quinta-feira, dezembro 21, 2006

Uma história de girafas... ou não



Naquele tempo em que a Brigada do Abominanço abominava a valer, um amigo, que é de outro filme e nem da Brigada sabia, fez férias na neve…
Uma amiga nossa, membro da Brigada do Abominanço, perguntou-lhe logo se lá havia girafas…
Ele, sem perceber nada da pergunta, conseguiu responder à altura e disse que, se ela se referia às pessoas que esquiavam mal e se ESTATELAVAM na neve,
havia muitas girafas por lá.

Nós, eu e a minha parceira de Brigada, a Borboleta azul, ficámos contentes por termos amigos de outros filmes que, mesmo no escuro, respondiam à altura.
Por isso, na minha Revolta dos Maços a girafa surge revoltada por não querer ser da neve e já vagamente estatelante.
Estava tudo a correr tão bem…
Um dia, em Coimbra, a tirar fotos ao despique com um amigo, aparece um grafiti, que até foi ele que viu, onde a teoria das girafas estatelantes…
vai à vida.



Ainda as girafas.. ou talvez não!



Às girafas da neve, que tão caras nos são, a mim que sou mesmo da neve e a ti que, como elas, és gira (e nada -fa) o nosso inestimável e surpreendente amigo anexou, com graça a qualidade estatelante, sem saber que se metia num filme da Brigada do Abominanço da India (ou talvez da China), que é ali, quando se vai para o Catassa, pelo abominódromo fora, e depois cortas no primeiro sexto sentido.

Pois bem, e que dizer ao bizarro acaso, obra das Fúrias, que me levou hoje a bater num muro que de nada se lamentava, mas que gritava no seu idioma grafitês que afinal, elas, as girafas (não as giras, note-se) afinal eram só ATELANTES, tinham perdido o EST, nem quero imaginar que iniciais serão, estas cadentes E, S e T, já que a sobejante informação é de facto, assustadora.
Elas, as girafas, não o são, também não são giras...nem sequer são gajas, são ELES e são... prepara-te: demónios...
Está tudo explicado - pensei eu, a perceber cada vez menos. Então se elas são eles e mesmo assim o pescador de ATUNS!!! sabia que vivam na neve, então eles, os demónios, disfarçam-se de girafas, estatelam-se e depois engolem o EST (Espírito Solidário Terrível ??? Estado de Sítio Tropical??? Estudante Safado Terrorista???) para se atelarem sei lá a quem...
O ou Kiko um dia disfarçou-se de diabo e o pescador percebeu tudo mal, já que 2 semanas e meia de faina não dão lá grande prática para perceber as abominações da vida? Se fosse o Kiko disfarçado, pelo menos explicava-se o porquê da sua insistente frase: NÃO HÁÁÁÁ GIRAFAS NA NEVE!

Preocupante, cara membro da Brigada do Abominanço. Algo ou alguém baralhou e voltou a dar e nós não estávamos na mesa. Exige reunião urgente de ti com mim, para deslindar as abomináveis lamentações, ou talvez não, do muro lamentante.
Sabes que mais? Palpita-me que é um filme de outro país, mas eu não sei qual, já que nem sei de que terra sou, mas será com certeza país de calores, sabores e pecados, Inferno, talvez.

Sim... sabemos que é de lá que os demónios são, digo eu que só tenho um desejo: que me expliques porque razão hoje tropecei numa parede que atravessei e me levou outra vez
a navegar a 24MB, ao colo do sapo que hoje era tudo menos subaquático, para a Maçolândia ou para o país da tua mágica branca neve.





quarta-feira, dezembro 20, 2006

Uma história de absurdos

A título explicativo, devo dizer que estes textos que se seguem nasceram numa época em que surgiram os primeiros programas do Gato Fedorento na SIC Radical. Eu adaptei a minha história à linguagem deles e também fiz algumas referências a personagens criadas por eles. Passo a apresentar as ditas personagens...






A Girafa que não é da neve e o Abominável Homem das Neves


O Pescador de Atuns com 15 dias de faina e o Urso



A Revolta dos Maços foi inspirada numa noite memorável que passei com o meu grupo de amigos. A esse grupo chamei a “Brigada do Abominanço”, pois andar em grupo na noite, a dançar e rir, beber e conversar é o que nós chamamos “abominar”…
Desse grupo de amigos, faz parte a minha querida



Borboleta azul



É à minha Borboleta azul, que dedico esta história.



A revolta dos Maços

(ou a pistola para lavagem de carros

que foi tudo nessa noite)




A noite até nos estava a correr bem. A Brigada do Abominanço tinha-se encontrado, nos sítios e horas do costume. Os vários amigos, os grupos entrecruzados, as teias humanas e desumanas que as histórias de amor, de amizade, de raiva e de dor tecem na noite.
Os sítios habituais, sempre novos, porque em cada noite há novos episódios e dados para enriquecer a já fílmica realidade virtual em que o grupo, a Brigada do Abominanço, se move.
Naquela noite, por exemplo, o Kiko já subira de estatuto: era ainda o mítico abominável homem das neves, mas era também já o meu telemóvel, o chatinho grilo falante e pensante.
As girafas ainda viviam na neve, mas já se suspeitava que uma, a estatelante, se andava a insurgir, porque afinal nunca tinha lá vivido, era tudo mentira e ela estava que nem podia…
… pressentia-se no ar um clima de insurreição. A Brigada do Abominanço apenas a intuía e, como tal, não ligou. Continuávamos todos a saltar à corda, ao som da balalaica do capitão Gancho, como se nada fosse.
Nós nem imaginávamos o que aí vinha!... Eram três, vislumbravam-se as suas sombras disformes na névoa da noite. Os olhos de ver não os viam bem, mas os olhos do coração viram e ficaram assustados! Eram três e tinham, sem sombra de dúvida, sete etílicos olhos dispostos na vertical, algures entre o alto da testa e o meio do nariz. Nariz esse, aliás, que tinha mais uma narina do que é habitual, facto muito suspeito.
A Brigada do Abominanço nem queria acreditar! Mas pior, muito pior, estavam os narizes da Brigada… é que esses tais três cheiravam, ofensivamente, a sandes de atum!
A Brigada, após meses de intensa faina, sabia que não eram três meninos da cidade, mesmo com sete etílicos olhos dispostos na vertical, que vinham para ali ensinar o que era a pesca ao atum! A Brigada do Abominanço estava treinada para a faina. Tinha o equipamento completo, a começar pelo isco, passando pelo anzol e acabando nos atuneiros. Connosco ninguém se mete! Muito menos três meninos da cidade…
Tínhamos tudo controlado: os Ramirez, os Bacalhaus (a relinchar de ignorância), os Atuns, os Bons Petiscos. E os três com aquela conversa de quem pensa que nos engana, com aquela treta de que o tempo estava a mudar! Pois sim.
Continuámos todos a saltar à corda e os três meninos da cidade, que deviam ser drogados, entraram na dança. Já agora, porque não? Afinal, já estávamos que nem podíamos, éramos todos colegas de faina… e elas encartadas valem que nem trunfos.
Estava tudo a correr tão bem, quando chegou a girafa estatelante. Vinha a relinchar de fúria e trazia consigo o urso, que era de outro filme, por acaso um filme indiano, mas também podia ser chinês.
A girafa encostou-se ao balcão e pediu um Frize. Antes da bebida chegar, dizia: - Ai, ai, ‘tô que nem posso! – Bebeu e relinchou, inconsolável, que estava na mesma. O urso, que tinha uma natureza muito meiga, ainda a tentou acalmar, mas estava tudo perdido… nós, a Brigada, é que ainda não sabíamos.
A girafa saiu a galope do atuneiro do capitão Gancho e nadou até terra firme. Foi à Maçolândia acordar os Maços
A Brigada do Abominanço, tranquilizada pela meiguice do urso e com a borboleta azul a borboletar, continuava a não ligar e a saltar à corda. Agora eram dois dos meninos da cidade que segurava e rodavam a corda!
Ora bem, eu quero aqui dizer uma coisa: os Maços são simpáticos. Metem-se um pouco em névoas etílicas, é verdade, mas não são nenhuns lenhadores. São um pouco relinchantes, trabalham para o Ministério do Susto (tal como o Kiko, o Homem do sapo, o Monstro das bolachas, o Papão, a Manuela Ferreira Leite, etc), mas são criaturas do bem. Com eles, ‘tá-se bem.
A girafa foi maquiavélica. Ela sabe que os Maços estão a passar uma fase difícil, porque um dos colegas de trabalho, o papão, foi fisgado pela esgatanhadeira da P.J. e está lá, nos calabouços da Judiciária, entre o Michael Jackson e o Padre Frederico, a abominar as suas culpas.
Os Maços, para se esquecerem da desdita do colega, tendem a perder-se no fascinante universo etílico da noite. Transformam-se, por um insondável processo químico, que só as borboletas conhecem, em criaturas de sete olhos verticais, em menos de um piscar de olho vertical.
O abominável homem do México decide pôr fim À saltadura de corda e, sem música, mas cheios de ritmo, os membros da Brigada do Abominanço partem em busca de outros portos de abrigo.
Alguns, fiéis à faina, foram para ambientes náuticos, mas naufragaram de encontro a uma proibitiva porta fechada. Essa facção da Brigada desistiu, foi dormir e perdeu a segunda parte do filme.
Mas nós não ligámos. Continuámos, catassantes e intrépidos, pelo abominódromo fora, sempre a saltar à corda. No momento em que estávamos quase a sacrificar o nananananana… chiuaua! Para fazer bifanas, nesse momento chave da nossa história, aconteceu.
A girafa, ao volante de um camião TIR, chega, trava a fundo, descarrega os Maços no abominódromo e desaparece, num relinchamento vingativo.
Os Maços invadiram o abominódromo, quais Hunos desgovernados, o inconsequente etílico a falar mais alto, o urso escandalizado com tanta falta de meiguice e os lenhadores espantadíssimos, pois nunca tinham visto tanta rudeza. O louco, fugido do manicómio, de cabelo em pé e óculos de libelinha, a carregar uma grade inteirinha de Frize para a mesa da Brigada do Abominanço. Estávamos que nem podíamos, quase a chegarmos ao ponto de podermos que nem estarmos.
Mas não ligámos. Continuámos todos a saltar à corda, desta vez a pé coxinho.
Os Maços estavam todos a abominar, mas era um abominanço desorganizado, caótico. Algures, naquele caos, haveria uma ordem, mas era imperceptível para nós.
Pela janela/ecrã vemos então chegar novamente a girafa estatelante, desta vez a galope e puxando pelas rédeas um bólide de cor indefinida. Os Maços pressentem a entrada em cena de novas personagens, aquelas que trarão ordem e organização ao abominanço mácico.
São elas, as novas personagens, uma homenagem aos Zi Zi Top, o Thor e oseu maço. Duas magníficas personagens que merecem estatuto de membros honorários da Brigada do Abominanço, tal é a mestria com que o praticam. Faziam-se acompanhar de um intrigante objecto, que eu venho a saber mais tarde ser uma pistola de água para lavagem de carros.
O dito objecto sofre uma primeira metamorfose e transforma-se em guitarra eléctrica, entusiasticamente tocada pelo Maço Thor. O Maço serial killer decide apoderar-se do objecto e metamorfoseia-o em arma de precisão mortífera. Dá corda à tola, aponta o alvo, chocalha a tola, erra o alvo e mata uns quantos… ups… por engano.
Ai, ai, que desgraça, tanto sangue! Logo o providencial objecto se transforma em mangueira de bombeiros e lava o sangue que empastava o chão.
Nós, ainda a saltar à corda, mas já a falhar os pulos, de tanta distracção abominante, vimos surgir uma antena de espionagem política, pela qual se ouviam os planos do próximo bombardeamento do filme árabe. O Maço cantor, com um ataque de nostalgia, decide brindar-nos com um No woman no cry etílicamente melado.
Pelo ecrã/janela a magnífica dupla Thor e o seu maço dançavam ao som da música que gritava de dentro do carro. Era um musical moderno.
Lá dentro, nós, que nem bilhete pagámos (Eh pá, 8 Euros para quê, se isto é de borla?), tivemos direito a um minuto de Matrix, dois minutos de Existenz e ainda uma cena d’Os anjos de Charlie.O filme acabou quando a girafa, desmancha-prazeres, travou a fundo o seu camião TIR, convocou os Maços e bazou, estatelante e furiosa. Com esta não se brinca

Afinal, o tempo vem demonstrar que ela é um demónio!

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Uma história de noves fora nada




De monolema a enealema
A todas a pessoas que se angustiam a conjugar os verbos “Escolher” e “Decidir”.

- Querida, por tua causa estou com um trilema! – disseste-me tu ao telefone. Moravas na indecisão, perante três possibilidades e sem saber para onde te virar, se para a visita, se para o adiamento, se para a desistência. Felizmente para mim, venceu a visita. Agradeço-te com este texto, inspirado no teu trilema.
A ideia nasceu com a tua brincadeira, tão ao gosto de quem, como eu, adora brincar com as palavras. Comecei a pensar que, se havia dilemas e trilemas, porque não abrir, de uma vez, o leque de monolema a enealema? E assim fiz: abri o leque.

Monolema - (Do gr. Monos + lemma, «uma proposição» )
O Sr. Matos, de férias nas Caraíbas, foi pescar num barco para o mar alto. Veio um tufão e afundou-lhe o barco. Havia apenas um bote salva-vidas, a única opção que o Sr. Matos tinha para não morrer afogado. Viu-se, na sua aflição de quase-náufrago, confrontado com este monolema e seguiu-o, salvando-se.

Dilema - (Do gr. Dís + lemma, «duas proposições» )
As bifurcações da vida estão cheias de dilemas, sobejamente conhecidas de todos nós, pelo que passarei à frente, ao -lema seguinte.

Trilema – (Do gr. Treīs + lemma, «três proposições» )
Os trilemas, que me serviram de inspiração, são, na minha vida, de cariz musical e linguístico. Sou apaixonada por Sérgio Godinho, Chico Buarque e Jaques Brel. Se tivesse que escolher apenas um, seria uma desgraça, um trilema!
O mesmo se passa em relação às três línguas estrangeiras que conheço. Como escolher entre o Inglês, o meu passaporte para o mundo e veículo de recepção cultural da minha geração, o francês, língua materna dos meus sobrinhos e o alemão, a minha primeira língua estrangeira, que comecei a falar aos três anos? Hmm... trilémico, sem dúvida. Mas solucionável, pois estes trilemas podem ser combatidos por meio de uma estratégia de compromisso chamada amálgama. Sorte a minha que estes três elementos não se excluem entre si.

Tetralema – (Do gr. Tetrás + lemma, «quatro proposições» )
Passemos aos tetralemas. Esses apresentam uma combinação problemática de quatro lados e quatro arestas. Um problemão de âmbito metafísico-existencialista!
É triste uma pessoa não ter norte na vida... mas não será muito mais trágico não nos conseguirmos decidir entre Norte, Sul, Este e Oeste? Passar uma vida aos encontrões, sem ver as setas que a intuição nos dita e avançar e recuar ao sabor da tetralémica indecisão? Haverá maior desdita do que carregar em si as quatro condições de desnorteado, des-sulado, desestado e des-oestado? Que mau deve ser viver esta dor existencialista, ser-se uma criatura errante, assombrada por tal tetralema. Eu, felizmente, encontrei o meu norte a tempo de não me tresmalhar pelos caminhos da vida.




Pentalema – (Do gr. Pénte + lemme, «cinco proposições» )
E que dizer do Pentalema? Esse, então, é uma questão mundial, que muito preocupa quem se interessa por estas questões absolutamente desprovidas de pertinência e relevância.
Será que eu prefiro a negra África, com seus tambores tribais, a erudita Europa, semeada de castelos e palácios, a serena Ásia, de nascentes Sóis, a miscigenada América, palco do extremo bom e do extremo mau? Ou a austral Oceânia, de saltitantes cangurus e intrépidos surfistas?
Na verdade, gosto de todas, pois em todas encontro mais encantos do que desencantos. Mas neste pentalema reside o verdadeiro drama das oportunidades bloqueadas, fenómeno decorrente da escolha de um continente em detrimento dos outros quatros. Optando por viver num dos cinco continentes, tenho de preterir quatro, já que a fábrica que me concebeu não me equipou com o dispositivo da Ubiquidade.
Este pentalema é um peso, mas alivia-me pensar que as alegrias da minha escolha poderão compensar as quatro janelas de oportunidades que fecho.

Hexalema – (Do gr. Héx + lemme, «seis proposições» )
O hexalema é um caso bicudo, mas, pelo menos, alegra-nos com o seu colorido. Escolher entre vermelho, verde, amarelo, azul, cor de laranja, cor de rosa... os deuses me livrem de tamanha responsabilidade! Logo eu, que sou tudo menos mono-cromática!
Como posso eu prescindir do fogo no olhar dele, que me incendeia os sentidos, quando me oferece uma apaixonada rosa vermelha?
E onde iria buscar o ânimo de viver sem o verde da Esperança, isto para não falar do ultraje que seria privar Camões de colorir os seus campos, da cor do limão...
Os canários e os girassóis seriam de que cor se não existisse o amarelo? E de cor pintariam as crianças os sóis dos quadros de tantos pintores a haver?
Eu pertenço à geração que cresceu a assobiar o tema do Verão azul. O céu, o mar, os olhos da minha mãe, da minha borboleta azul, do meu pinguim... não, não posso prescindir do azul.
Eu sou natural de uma aldeia, reputada pela excelente qualidade das suas laranjas e tenho uma alma cheia de vitamina C. Além disso, sou de Portugal, que em árabe significa laranja, já que os árabes conheceram no nosso país ( e baptizaram em conformidade) essa sumarenta bola laranja que os nossos navegadores trouxeram do Oriente. Sem o laranja, de que cor pintar os meus mais sumos sentimentos?
E o rosa? O optimismo de quem vê tudo cor de rosa, os sonhos, o romance, a Edit Piaff e o seu La vie en rose? Ai, este hexalema deixou-me em branco e isso provoca-me pensamentos muito negros. Passemos ao heptalema, a ver se me volta a cor...

Heptalema – (Do gr. Heptá + lemme, «sete proposições» )
Pacífico é bom, é sereno e tranquiliza-nos. Mas o Atlântico é tão cheio de furor e semeado de Açores, Madeira, Canárias, Cabo Verde, São Tomé... O Atlântico tem o charme do príncipe. O enigmático Índico, com suas rotas de seda e canela e com uma bela Madagáscar plantada também é tentador. E que dizer do gelado Árctico, com a brancura meiga e sem mácula dos ursos polares, ou do Antárctico gémeo antípoda, onde vivem os primos do meu pinguim? Como prescindir do Mar Mediterrânico, tépido berço dos meus antepassados? Ou então do Mar do Norte, que tão melancolicamente Brel imortaliza no seu Plat Pays...
Um oceânico heptalema com solução à vista: equitativa distribuição de férias pelas praias do globo mundo. Assim, poderei lavar a alma, refrescar os pensamentos e mergulhar as recordações nos cinco oceanos e dois mares da minha predilecção. Sete mares, Sétima Legião – um heptalema promissor.

Octolema – (Do gr. Októ + lemme, «oito proposições» )
O octolema é um antro de pecados e pôs-me a cabeça em água, por causa do mar onde vive o tentacular polvo. Qual dos sete pecados capitais (mais o oitavo, da modernidade) devo aniquilar primeiro? Pensando bem, a ideia de usar um polvo para representar o mal do mundo é interessante...
No primeiro tentáculo, a Gula, pela boca morre o peixe; no segundo, a Preguiça, que prazer não cumprir um dever; no terceiro, a Ira, a pôr bombas na Irlanda há tantos anos; no quarto, a Soberba, a não dar a mão a quem mais precisa; no quinto, a Avareza, a roubar a grandeza do homem por causa do amor ao vil metal; no sexto, a Luxúria, a matar o amor em orgias de desamor; no sétimo, a Inveja, a roubar indecentemente a legítima cor à Esperança e, finalmente, no oitavo tentáculo, a Pressa, esse pecado da idade moderna, tão cheia de subterfúgios falaciosos que, ao invés de nos pouparem tempo, nos atiram para a loucura urbana de passar a vida em correrias, ignorando o pôr-do-sol. A Pressa é maligna e letal, porque nos rouba a vida enquanto fazemos absurdos planos e esforços para poupar tempo.
Em suma, um pôlvico e pecaminoso ramalhete. E qual dos pecados aniquilar primeiro? É, sem dúvida octolêmico... mas há que ter calma e bom senso. Sobretudo não incorrer no erro de tomar uma resolução ditada pela pressa.

Enealema – (Do gr. Ennéa + lemme, «nove proposições» )
Chegamos, finalmente ao enealema, mas esse é fácil. O leitor que se decida se prefere debater-se com
os simplistas monolemas,
os usuais dilemas,
os amalgamáveis trilemas,
os cardinais tetralemas,
os continentais pentalemas,
os coloridos hexalemas,
os oceânicos heptalemas,
os pecaminosos octolemas
ou o NADA, a súmula de tudo isto.

Já que, como nos dita a matemática lógica, na sua prova dos nove, NOVES FORA NADA...
(ou, como tão acertadamente um amigo sugeriu, talvez a minha condição de Pinguím da Neve permita usar a expressão personalizada "NEVES FORA NADA"... )
Seja como for, aconselho que a escolha seja ponderada, para que o pecado capital da modernidade, a Pressa, não se atrevesse no nosso caminho e nos transforme em seres vazios, que é como quem diz... em nada.



MN
Castelo de Paiva, 3 de Março de 2006


terça-feira, dezembro 12, 2006

Uma história de refúgio

Para ti, Pax, que foste a minha cor durante tanto tempo.

A cor do decoro (ou o ataque das Fúrias)

Fúrias - são três deusas vingadoras que punem os mortais. Vivem nas profundezas doHades, onde torturam as almas pecadoras. Alecto, a implacável, encarrega-se de castigar os delitos morais como a ira, a cólera e a soberba. Esta é a Fúria que espalha pestes e maldições;Megera personifica o rancor, a inveja, a cobiça e o ciúme. Castiga principalmente os delitos contra o matrimónio, em especial a infidelidade. É a Fúria que persegue com a maior ferocidade, fazendo a vítima fugir eternamente. Tisífone, a vingadora dos assassinatos, é a Fúria que enlouquece a vítima.Como o castigo final dos crimes é um poder que não corresponde aos homens (por mais horríveis que sejam), estas três irmãs encarregavam-se do castigo dos criminosos, perseguindo-os incansavelmente até mesmo no mundo dos mortos, pois o seu campo de acção não tem limites. As Fúrias são convocadas pela maldição lançada por alguém que clama vingança. São deusas justas, porém implacáveis, e não se deixam abrandar por sacrifícios nem suplícios de nenhum tipo. Não levam em conta atenuantes e castigam toda a ofensa contra a sociedade e a natureza, como por exemplo, o perjúrio, a violação dos rituais de hospitalidade e, sobretudo, os assassinatos e crimes contra a família.As Fúrias são entidades divinas que personificam a vingança e punem os mortais. Ou seja, de uma forma pouco explicada, elas acompanham a nossa vida na sombra e intervém nela para nos castigarem. Embora a sua jurisdição diga respeito a crimes horríveis e de grande monta, confesso que sempre me questionei se não serão também da responsabilidade delas os pequenos impedimentos que nos atravancam a vida. Sempre que perdemos o comboio ou o carro fica sem gasolina, sempre que o Multibanco nos engole o cartão e não o podemos resgatar porque o banco está fechado e também não temos dinheiro para pagar a gasolina e como tal vamos a pé para casa, porque também não há táxis de borla, sempre que a criança adoece no dia em que temos aquela apresentação à qual não poderíamos faltar, sempre que temos um furo e também chove, claro, sempre que temos bateria no telemóvel e não temos saldo, sempre que temos saldo e ficamos sem bateria, sempre que temos saldo e bateria … e não temos rede, há quem ache que “são coisas que acontecem”. Mas não são! Pelo menos eu desconfio que não…Só quem não imagina ouvir a gargalhadinha vingativa das Fúrias é que poderá achar que estes contratempos são coisas do acaso.As leis de Murphy preconizam que “Se alguma coisa pode dar errado, dará. E mais, dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível”.A nossa vida quotidiana é isso, este lufa-lufa de correrias, sem tempo para nada, onde as Fúrias se vão divertindo a atropelar-nos com contratempos. Eu acho que as grandes vinganças dos crimes horrendos é o trabalho delas e os pequenos impedimentos que nos causam são a diversão com que ocupam os intervalos. E nós lá vamos vivendo, vendo a vida passar sem a vivermos de facto, tão inebriados nos problemazinhos e na busca de soluções para as rasteiras das Fúrias e na vã tentativa de fintar as inexoráveis inevitabilidades das leis de Murphy que nem tempo temos para apreciar a tranquilidade de um céu azul.Esse é o nosso decoro, a nossa vida cinzenta, sempre igual, sempre polvilhada de nós cegos, sempre gasta a tentar desatá-los.Para quem precise de respirar, sugere-se a cor. Um universo paralelo onde o mundo e a vida ficam umas horas à porta. Onde se é absolutamente feliz. Onde se recarregam baterias para enfrentar o cinzento decoro.A cor pode ser muita coisa, é basicamente a nossa vingança pessoal para com as pequeninas diversões das Fúrias e a nossa manifestação de desalento ao constatar a inevitabilidade à qual não podemos fugir. A nossa cor – o decoro não me permite entrar em grandes pormenores, já que cada um sabe de si – é, talvez, a forma de respirar dentro de uma vida sufocante. Lembro-me, por exemplo, de uma simpática francesa que fazia ricochete com pedras na superfície de um rio. E essa conhecia um velhote que obliterava folhas de loureiro. O meu vizinho do lado rasga papéis, jornais, folhetos e delicia-se com o trrrrrrrrrrrrtt tranquilizante. Enfim, cada um sabe de si. O que importa é que exista e que o seu colorido saiba refrear as Fúrias e paralisar, momentaneamente a fatalidade das leis do tal Murphy.

O que importa é que nos dê forças para enfrentar o cinzento da nossa vidinha.

Margarida Neves

Mira, 9 de Dezembro de 2006


domingo, dezembro 10, 2006

Uma história de atalho



Mais a direito


Uma senhora muito simpática, chamada Georgina, disse-me um dia, a propósito do seu nome que não era assim que as pessoas a tratavam. Na sua voz calma e arrastada, explicou:
- O meu nome é Georgina, mas as pessoas chamam-me “Jorzina”, que é mais a direito.
Esta frase, dita naquele belíssimo sotaque ribatejano – embora a senhora viva a sul do Tejo – nunca mais me saiu da cabeça.
Linguista amadora que sou, dou por mim muitas vezes a pensar estas particularidade da língua. Já nos meus tempos de contacto diário e directo com o crioulo de Cabo Verde, me fascinava com o princípio da parcimónia. Basicamente, trata-se do emprego da lei do menor esforço, transposta para o universo da articulação de uma língua. Por exemplo, de um rebuscado e quinhentista: “Vós quereis conhecer-me” atalhou-se, em crioulo, para um despachado e compactado “Bo kre konxe-m".
Há dias, o meu pai, leitor compulsivo, comentou que não conhecia uma palavra que aparecia no livro que andava a ler. – Deve ser uma palavra muito rara – pensei, conhecedora da amplitude lexical do leitor em causa. Tratava-se da palavra “Pâmpano”. Fomos logo procurar no dicionário para descobrirmos…

Pâmpano - s. m.
(bot.) ramo tenro de videira; parra;
(arq.) ornato que imita ramos de videira com parras e, às vezes, com uvas.
(Do lat. pampînu-, «ramo de videira»)

… que se tratava de um rebento terno de videira. – Ahh… - disse o meu pai – eu sempre chamei a isso “pompo”. Afinal, ele conhecia a palavra. Mas conhecia a sua versão mais a direito.
Da mesma forma, quando se vai à “Cambra” Municipal ou se fazem “Combros” a ladear terrenos de cultivo, vai-se mais a direito do que fazendo o esforço de articular as palavras Câmara e Cômoro.
Na minha terra, as fogueiras acendem-se por atalhos, com “fórfs” ou “fósfres”, já que o tempo gasto para dizer a palavra toda demora mais que um fósforo. E se não estiver frio e precisarmos apenas de luz, acendemos a “lampa”, que se for a lâmpada podia-se gastar mais.
Pelos atalhos do linguajar, fomos criando uma versão alternativa à língua oficial, a dos calhamaços, que no fundo, ninguém fala no seu estado puro. Seguindo o princípio da parcimónia, inventámos uma espécie de crioulo gandarez. Despachado e desenrascado como é, o gandarez não esteve com meias medidas e optou pela via mais fácil, a que dava menos trabalho: foi mais a direito.
Da mesma forma que os ribatejanos chamam “Jorzina” à D. Georgina, por todo o país existe uma versão alternativa e simplificada do léxico dos calhamaços. Dizia-me o meu amigo Andrea Santi, Italiano de Sienna a estudar em Coimbra, que o português que aprendeu em Itália era uma língua diferente da que os portugueses usavam. Para o confortar, expliquei-lhe a minha teoria. Ele aprendeu português, mas cá fala-se crioulo.



MN
Mira, 26 de Novembro de 2006

Uma história de desavença



Um casamento feito no céu

À Raquel, amiga de todas as minhas horas

Ela e ele nunca se entenderam. Embora ambos possam ser classificados pelos literatos como personagens redondas, tinham formas diferentes. Formas de ser, de oscilar, de rodar. Formas de coordenar tempo com movimento, formas, enfim, de circular no espaço reservado a cada um.
A incompatibilidade das formas era já suficiente para que eles não se entendessem, mas um outro factor mais cáustico, mais corrosivo, tornava qualquer hipótese de entendimento impossível: a incompatibilidade de horários. Ele rodava durante o dia, passeava a sua majestosa e redonda figura pelas luminosidades azuis ou cinzentas. Preferia as azuis e amuava nas cinzentas.
Ela era uma criatura da noite. A sua palidez denunciava essa escolha de vida, essa preferência pelos céus escuros, salpicados de estrelas e planetas.
Ela chegava quando ele partia. Ele chegava quando ela partia. Não é de espantar que nunca se tenham entendido! Arrastavam há séculos aquela relação, feita de desencontros permanentes, de silêncios contrariados, de lágrimas de chuva nele e chuva de estrelas nela.
Naquele dia, algo estalou dentro dele. De temperamento fogoso e impulsivo, decidiu, sem reflectir, retardar um pouco a sua entrada, para a apanhar na saída. Correu mal. Muito mal, mesmo. Discutiram, gritaram insultos, ou melhor, ele gritou, vermelho de fúria, enquanto ela apenas escutava, escondendo a mágoa atrás de um cínico sorriso amarelo, que ainda o enfureceu mais. A discussão, embora feia, durou pouco. O tempo urgia, ele tinha de entrar, ela tinha de sair. Da discussão apenas ficou a pairar no ar o clima gélido.
Foi por isso que naquele entardecer de Janeiro o Senhor Sol se pôs no mar, vermelhão de fúria e a Dona Lua surgiu no céu do crepúsculo, ainda de sorriso amarelo na sua cara de lua cheia. Mas ela não era de rancores e, pouco tempo depois, já se passeava redonda, branca, luminosa e bela pelo céu nocturno. Estava como nova.

Ah, claro, estávamos na lua cheia, mas para a história dar certo, ela devia ser nova.



MN
Ponte das Três Entradas, 26 de Janeiro de 2005

Uma história de amor



O troféu único


À Celeste, que sugeriu o final desta história.

Passavam poucos minutos das sete da manhã. Dentro do meu carro, estacionada nas traseiras da Universidade de Coimbra e protegida do frio agreste daquele Dezembro rigoroso, entretinha-me a observar os infelizes que andavam ao frio.
Era um Renault Clio branco, matrícula RX – 07 – 61 (tenho a mania de fixar as matrículas). Aproximou-se do meu carro e estacionou mesmo à minha frente. Tornou-se, imediatamente, o meu alvo predilecto de observação. Do Renault primorosamente, milimetricamente estacionado, saiu um homenzinho envolto numa gabardine vestida à pressa. O vento gelado logo lhe despenteou o cabelo e empurrou a porta do carro. Via-se que estava com dificuldades para reunir os objectos que estavam dentro do carro e que queria levar consigo. Depois de alguns momentos de luta com o vento, que agora lhe empurrava a gabardine, lá conseguiu vencer e fechou a porta do carro. Na mão direita, um pasta professoral que adivinhei repleta de papéis desorganizados, mas geniais. Por detrás dos óculos de lentes grossas, consegui vislumbrar um olhar simultaneamente distraído e inteligente. “Deve ser professor universitário de matemática”, calculei.
A justificar o meu palpite tinha dois indícios fortes: uma pasta transportada por um olhar distraído e um carro primorosamente, milimetricamente estacionado. Divertida, ocorreu-me que, naquele dia, as forças cósmicas pareciam estar conjugadas para me aproximar da matemática. Sendo linguista, tinha-me inscrito num curso livre de matemática, era por isso que estava em Coimbra naquela manhã, e o destino estacionou-me um matemático genial à minha frente!
Satisfeita com o resultado das minhas meditações e inferências e ainda distraída com a estranha coincidência cósmica que me empurrava para a matemática, levei alguns segundos a aperceber-me do objecto que o professorzinho transportava no braço esquerdo. Carinhosamente aninhado entre o peito e o braço, como se de um bebé se tratasse, trazia um troféu de prata.
Não me lembro bem, mas acho que respirei fundo, tal foi o meu espanto. A observação estava-me a correr bem, o meu alvo apresentara-se até então dentro de parâmetros coerentes, tinha conseguido atribuir-lhe uma profissão, baseada em indícios que, a meu ver eram fortíssimos e irrefutáveis. Estava-me tudo a correr tão bem... e agora isto! Um professor de matemática (o meu espírito já não tinha dúvidas), dirige-se a pé para a Universidade e transporta um troféu de prata ao colo numa fria manhã de gelo.
O troféu a precisar de colo era um elemento tão contrastante com o cenário que me contrariou profundamente. Confesso que fiquei levemente irritada e, para ver se me passava, fui tomar café, até porque o curso livre que ia frequentar começava daí a vinte minutos.

PAUSA PARA CAFÉ

O curso livre decorria na faculdade de medicina, numa sala cedida temporariamente à matemática. “É pena” pensei eu “se fosse na faculdade de matemática ainda me podia cruzar nos corredores com o maluquinho do troféu ao colo”. Quando entrei na sala, já havia poucos lugares vagos e concentrei-me a procurar um espaço que me agradasse. Só depois de sentada observei a mesa do professor. Tive vontade de me beliscar para acordar daquele sonho. O troféu mimado estava ali, à minha frente, em cima da mesa do professor! E pior, o professor não era o meu maluquinho, mas um jovem Deus grego, moreno de olhos verdes. Só podia mesmo ser um sonho. O homem dos meus sonhos e o símbolo da vitória. Mas vitória de quê?
Decidi acordar no momento em que o jovem de olhos verdes começava a falar. Ele era um assistente, responsável pela organização do curso livre e tinha convidado para a primeira aula um eminente conferencista, muito conceituado no mundo da matemática por ter descoberto um teorema cujo nome me escapa. Pediu palmas quando o conferencista entrou e era ele, o do troféu. Comecei a ficar mais contente. Estava provado que as minhas deduções estavam certas e, com sorte, talvez se explicasse a presença daquele intrigante troféu.
No meu estágio pedagógico, ouvi falar e comecei a por em prática uma coisa chamada “motivação de aula” que é uma espécie de isco para prender a atenção do aluno e entusiasmá-lo para o assunto a ser abordado. Assim que o conferencista começou a falar, percebi que o troféu era um isco.
Tinha sido o prémio ganho nas olimpíadas mundiais de matemática. Era a prova de um amor de toda a vida, de um sonho concretizado. Agora já se percebia o colo, o mimo, o cuidado.
Então, alguém no fundo da sala perguntou ao conferencista quantos tinham sido os participantes dessas olimpíadas. Ele não respondeu logo. Sorriu e fitou-nos com aqueles olhos distraídos, mas cheios de inteligência. Por momentos pareceu viajar no tempo, imerso nas suas recordações. Depois, explicou-nos que ele tinha sido o único participante nas olimpíadas, porque já não tinha ninguém que se igualasse a ele. O troféu era dele, já que ele era o único a apresentar um teorema. Mas para ele, era como se tivesse vencido cem participantes. Porque mais do que a concorrência ou a competição, interessava-lhe a sua entrega à matemática e aquele troféu lembrava-lhe todos os dias que vale a pena trabalhar e investir num sonho, mesmo quando a única mente com a qual se compete é a nossa.
Se o troféu significava tudo isso para ele, então era justo que o trouxesse ao colo. Afinal é a um filho que nos dedicamos todos os dias e não competimos com ninguém pelo amor dele. E trazemo-lo ao colo.


MN
Início: Ramalheiro, Janeiro de 2005
Fim: Castelo de Paiva, 6 de Fevereiro de 2006

sábado, dezembro 09, 2006

Uma história de calor



À minha Manu, amiga de sempre, a quem vergonhosamente roubei a luminosa ideia desta história.

Sabedoria luminosa



Ele até achava bem que a vila estivesse electrificada. Era um sinal de progresso, bom para o desenvolvimento do concelho, pelo menos era o que o candidato tinha gritado ao microfone.
Nos seus tempos de menino, não havia luz eléctrica e, no entanto, ele e outros tinham nascido, crescido e vivido. Mas a sua sábia idade ditava-lhe aceitar o progresso como consequência nefasta do prometido desenvolvimento.
Era por isso que não se incomodava com a ELECTRA, aquela central barulhenta e irrequieta, sempre a soprar fumos quentes pelas narinas dos ventiladores. Ao princípio, não conseguia dormir com o barulho que lhe invadia os sonhos e o deixava confuso de dia e agitado e vigilante de noite. Aquele calor que lhe entrava pelas janelas também foi um problema, mas, dizia, com um encolher de ombros, um homem de Deus habitua-se a tudo.
Depois chegou o advento da ecologia e logo vozes se levantaram a apregoar os malefícios daquela central. Diziam palavras que ele não conhecia, mas que a sua intuição lhe explicava. Poluição sonora, surdez precoce, poluição atmosférica, problemas respiratórios.
Afinal, tudo isso não era novidade, ele mesmo já o tinha pensado, embora com palavras mais claras.
Nas eternas guerras políticas que sempre existiram, desde que há homens a querer mandar, logo os outros refutavam que o desenvolvimento, o progresso eram mais importantes, eram o futuro, aquela palavra já tão pequena para ele, mas tão grande que enchia a boca de todos.
Também esses tinham razão. Afinal, ter luz em casa era bom. Poder ver aquela coisa que chamavam televisão e que não lhe ensinava nada, ter a cerveja fresca naquele armário branco, frigorífico, era o nome disso.
Coçou a cabeça, num gesto sem idade, que precedia a chegada do sono. Foi à janela olhar o céu e lançou um olhar ao monstro barulhento e fumegante que lhe fazia tremer as paredes ia já para dois anos.
Deitou-se, soprou a vela e fechou os olhos, para ver se o sono chegava.



MN
Aeroporto Internacional Amílcar Cabral
Ilha do Sal, Julho de 2001

Uma história de frio


A união faz a força
(e mais vale dois doentes que um)



À janela do meu quarto, fumava um cigarro e perdia-me em pensamentos. Subitamente, apercebi-me de uma cena que se passava mesmo à minha frente, no parque de estacionamento da piscina municipal que está plantada nas traseiras da casa onde eu morava naquele ano.
Uma mulher, vestida com um fato de treino e com o cabelo molhado – arriscava-se a apanhar uma pneumonia, exposta ao frio daquela noite de Janeiro – estava ali parada, parecendo a imagem do desalento. O único automóvel que se via, um modelo antigo, contemporâneo do meu, que anda a sofrer de tosses e gripes mecânicas próprias da idade, deveria ser propriedade da mulher do cabelo molhado. Mulher essa que as minhas brilhantes faculdades dedutivas levaram a crer ser utente da piscina!
Contudo, a mulher continuava na rua, a personificar o desalento, a perscrutar a rua e a cozinhar uma pneumonia. O carro deve ter uma avaria, pensei eu e pensei bem. Chegou uma carrinha branca e dela saiu a providencial ajuda, também ela, vejam lá a coincidência, de cabelo molhado, mas, arrancada pela amiga ao duche, trazia uma turbante toalha. A turbante toalha começa a empurrar o carro modelo antigo com a cabelo molhado ao volante. Mas a velocidade que a turbante toalha imprimia ao modelo antigo não era suficiente para que a cabelo molhado o conseguisse ressuscitar. Tentaram várias vezes, comigo a torcer por elas, do confortável anonimato da minha janela. Finalmente, a turbante toalha deu mostras de cansaço (até eu estava, só de a observar!) e a cabelo molhado decidiu pôr em prática outra estratégia, ou seja, o plano B. Entrou na piscina e saiu de lá acompanhada por três solícitos, prestáveis e musculados mancebos que se organizaram em equipa e em três tempos puseram o modelo antigo a rosnar e a bufar com todo o seu furor mecânico.
Deste episódio se tiram duas conclusões: a primeira é que a união faz a força;
A segunda é que se a cabelo molhado tivesse optado logo no início pelo plano B, existiria apenas uma mulher com pneumonia no dia seguinte. Mas ela não foi egoísta, quis partilhar a doença com a amiga...

Castelo de Paiva, 3 de Janeiro de 2006
M.N