quinta-feira, janeiro 18, 2007

Uma história de não existir


É que não há


Se há dúvidas recorrentes e permanentes no âmbito da escrita do Português, a mais flagrante e constante é a confusão entre a contracção “à” e a forma verbal “há”.
Por mais que eu insista com os meus alunos, por mais que eu me esforce e explique que “à” e “há” são duas palavras distintas que só têm em comum o som, a confusão veio para ficar.
O truque usado pelos professores é mandar substituir a forma verbal “há” por “existe”. À partida, este método parece infalível:

- Meninos, escrevam: “No quintal há fruta madura…”
- Ó professora, é com agá?
- Então, pá, não vês que sim? “No quintal existe fruta…”

Ou então:

-Meninos, escrevam: “A Teresa estava à janela”…
- Ó professora, é com agá?
- Pois, está-se mesmo a ver! “A Teresa estava existe Janela…”

No entanto, não há como aplicar o método ininterruptamente para que, em algum momento, ele revele uma falha inultrapassável.
Uma amiga minha encontrou um bilhete escrito pela sua empregada, onde se lia “Não à cebolas”. Como professora de Português, apressou-se a explicar à senhora que não era “à”, era “há”, porque era do verbo “haver”, que era o mesmo que dizer “existir”. Ao que a empregada, na sua lógica inabalável retorquiu que então, a senhora doutora que desculpasse, mas era mesmo sem aga, porque não era do verbo “existir”, mas sim do “não existir”, pois não havia mesmo cebolas em casa, logo era sem agá.
Não há método infalível que não falhe um dia…


Margarida Neves
Figueira da Foz, 15 de Janeiro de 2007

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Uma história de miniaturas

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Como um Bonsai

À Vera Gabriel – ela sabe porquê


Verónica teve durante muitos anos aquele cavalinho de madeira escura na sua secretária. Tinha sido um prémio dado por uma professora cheia de ideias brilhantes. A melhor composição tinha como prémio um cavalo, a segunda melhor um cão, a terceira um gato de madeira. O cavalinho era o seu companheiro desde esse dia glorioso, o dia em que a professora leu em voz alta a sua história, louvou o tema escolhido, “Se eu fosse nuvem, não chovia em nenhum coração” e toda a turma a aplaudiu com entusiasmo.
Logo no caminho para casa, de cavalinho bem apertado na mão esquerda e cavalgando-lhe pelo braço acima, até se alojar no coração onde brilhava o Sol da sua história, a pequena Verónica decidiu que a sua vida seria em permanência uma homenagem aos cavalos. Amava-os de longa data e com loucura.
Embora vivesse na cidade e só raramente os visse ao vivo, faziam diariamente parte da sua vida: coleccionava com avidez postais com imagens de cavalos e o seu sonho era ter um dia uma quinta onde pudesse ter muitos e cavalgar até à linha do horizonte.
Era como se sonhasse ter uma floresta e lhe tivessem oferecido uma árvore em miniatura.
Uma miniatura – sorriu. Abriu a mão onde o cavalinho estava aprisionado.

Gostas de Bonsais? - perguntou-lhe - Vou chamar-te Bonsai!
Cresceu com o Bonsai a trotar-lhe pelos livros, a galopar-lhe nas linhas dos cadernos, a saltar-lhe as vedações do lápis e canetas. De noite, dormia no estojo-estábulo.
Eram grandes amigos, Verónica e Bonsai. O tempo passou e ela frequentou o liceu e a universidade e fez-se médica. O seu amor por cavalos manifestava-se em pequenos gestos e em grandes decisões. Quando o Bonsai morava na sua secretária há quase um ano, nasceu-lhe em casa uma menina a quem ela insistiu chamar Filipa, a amiga de cavalos. Os pais concordaram e essa irmã, baptizada à luz de uma paixão alheia, também cresceu a amar o Bonsai e os seus parentes grandes e vivos que corriam pelos campos.
Nas tardes douradas de Domingo, Verónica levava Filipa a passear, para verem os amigos cavalos pastarem altivos nos prados. Verónica gostava dessas visitas à floresta, mas gostava ainda mais de voltar a casa, para a sua arvorezinha, o seu Bonsai único de tão particular.
Um dia trágico, Bonsai morreu. Um pequeno incêndio no escritório causou poucos danos à família, mas matou um pouco a Verónica por dentro. Feito de madeira, Bonsai foi dos primeiros objectos a arder, secar e desfazer-se em cinzas. Fiel aos princípios que defendia desde a infância, não deixou que as nuvens de tristeza lhe chovessem no coração. Afinal tinha tantos outros motivos de felicidade e o Bonsai era seu, muito seu. Mesmo cinza vivia na sua memória.
Os dias passaram, os anos passaram. Verónica era uma jovem médica ortopedista e trabalhava em colaboração com um centro hípico. Foi aí que conheceu Rodrigo. Ele era o veterinário que estava à frente do projecto em que Verónica trabalhava.

A conexão era perfeita, sentiam-se bem quando estavam juntos. Os silêncios entre eles eram confortáveis e isso, sabiam-no, queria dizer tudo.
Rodrigo foi um dia em trabalho a Viana do Castelo e, no regresso, trouxe à Verónica um inesperado presente. E também uma grande surpresa, uma surpresa maior do que ela. Quando rasgou o papel de embrulho, foi assaltada por uma estranha sensação. O passado atropelou-a no presente, a cinza recuperou a consistência da madeira. Espreitando dentro do embrulho rasgado, talhado numa madeira mais clara e com uma estrela na testa, um cavalinho irmão quase gémeo do Bonsai era o pequeno presente que Rodrigo trouxera a Verónica. Ele sabia que ela ia gostar, porque lhe conhecia o amor pelos cavalos. O que ele não conhecia era a história do Bonsai, Verónica só falava dele com a irmã, Filipa. O que Rodrigo não sabia era que o destino lhe dera o trunfo exacto para ganhar o coração da mulher que amava. E sem se saber munido de tal trunfo, jogara-o, porque assim lhe ditara a intuição.
O que Verónica já sabia era que tinha encontrado o amor da sua vida. Ela sabia que Bonsai olhava sempre por ela, onde quer que estivesse. E também sabia que ele lhe afugentava as nuvens, para que nunca lhe chovesse no coração.


Margarida Neves
Figueira da Foz, 11 de Janeiro de 2007


terça-feira, janeiro 02, 2007

Uma história de imprevisto

Em Coimbra, há poucos meses, foi construída uma belíssima ponte pedonal que tem umas paredes laterais numa sinfonia de mosaicos de vidro tricolor. Estes vidros estão dispostos como as facetas de um diamante, em vários ângulos.
Nada percebo de arquitectura e, tal como em todas as artes em que sou apenas contemplativa, a minha atitude é sempre a de admirar o belo, Sabendo, humildemente que não lhe apreendo a mensagem total. No entanto, a mensagem de um artista
é captada e construída pelo número de pessoas que a conhecem, numa plural concretização. A obra de um artista renasce em quem a vê e interpreta, sempre em renovadas roupagens. É essa a beleza da arte.

No entanto, enquanto passeava na ponte pedonal, outra ideia me ocorreu e é nessa que embarco, debruçada na sua tricolor amurada, rumo à minha próxima crónica.

Este texto é dedicado ao meu inesperado milagre, com quem fui conhecer a ponte pedonal de Coimbra.

O inesperado milagre

Não sei qual o objectivo de pôr aqueles vidros tricolores na ponte pedonal… mas já lhe encontrei uma utilidade. E encontrei-a de forma casual e acidental.
Casual, pois nem contava ir a Coimbra nesse fim-de-semana; acidental porque eu só queria fotografar o meu reflexo, humilde e modesta como sou…

E não é que surge um inesperado milagre?

A imagem surpreendente que resultou da minha atitude, plena de vazia vaidade, levou-me a pensar nas coisas magníficas que nascem de gestos direccionados para outros objectivos. Sendo fruto de um acidental desvio, originam resultados que têm tanto de fantástico como de inesperado.
Da feliz coincidência do acaso, nasceu uma fotografia que eu, confesso, nem acho digna de mim, já que eu gosto é de letras e palavras e nunca me considerei grande fotógrafa. Esta imagem equivale aos meus quinze minutos no âmbito da imagem.
Esta fotografia é também, sem dúvida, o milagre nascido de uma tosca e fútil procura de auto-retrato. Através de desvio acidental de um propósito único, consegui, sem o pretender, captar a cidade ao fundo, o reflexo das árvores atrás de mim e o meu reflexo, tudo num colorido puzzle de luz, realidade e reflexão.

Vou pegar na minha realidade, a de ter tido vários anos de experiência como professora de Português no ensino básico e secundário em Portugal e Cabo Verde e desenvolver uma reflexão acerca dos inesperados milagres que já me aconteceram enquanto professora.

È usual dizer-se que, se entre todos os alunos de um professor, apenas um aproveitar o trabalho realizado nas aulas e evoluir no seu conhecimento, esse único aluno compensa o trabalho e a dedicação do professor. O meu princípio é esse e é esse o de todos os professores que o são, de facto.
No entanto, nunca ouvi nem li nada sobre pequenas surpresas que os "artistas a haver" que tenho à minha frente numa sala de aula são capazes de fazer…
Se eu levo textos divertidos para eles lerem, é natural que haja um aluno que me venha entregar textos giros e imaginativos – aconteceu com o Telmo. Se eu promovo em aula oficinas de escrita com temas estimulantes, também é natural que uma aluna me diga que descobriu comigo que adorava escrever – aconteceu com a Patrícia. Se eu aconselho livros de leitura paralela e escolho os títulos mais apetecíveis para eles, é natural que outra aluna me traga listas de palavras desconhecidas, retiradas do livro que andava a ler e me pergunte o seu significado – aconteceu com a Sandra. Lembro-me que esta menina chegava a sacrificar os preciosos intervalos para aprender vocabulário novo comigo. Tudo isto são pequenos milagres que fazem com que a vida de professor valha a pena e que nos aquecem o coração. Mas são aqueles milagres esperados por nós, professores. Do mesmo modo, também o arquitecto que projectou a ponte pedonal de Coimbra espera o milagre de a ver bela, admirada e fotografada.
Mas o que ninguém espera - e por isso é que lhe chamo inesperado – são as pequenas ou grandes coisas que nascem da nossa atitude, mas não resultam no que nós projectámos. Divergem, logo no início da recepção e dessa viagem alternativa nasce algo fantástico. Fantástico, porque é um milagre nascido de um acaso acidental e mesmo assim, ou exactamento por isso, resulta em algo inesperado e alternativo.
No ano passado, por exemplo, tinha a meu cargo quatro turmas do 8º ano e era professora de Português dessas turmas e também de Estudo Acompanhado de três dessas turmas. Numa aula de Estudo Acompanhado, surgiu a oportunidade de lhes mostrar o filme O Fabuloso Destino de Amélie de Jean-Pierre Jeunet. O filme é excelente e eu sabia que os meus meninos iam ficar cativados por esta história tão engenhosa e bem contada. O que eu pretendia com esta actividade era mostrar-lhes bom cinema europeu, e testar a atenção deles, uma vez que lhes distribui uma ficha de acompanhamento do filme, onde existiam várias perguntas relativas a pormenores que apareciam apenas fugazmente. Quem acertasse no questionário todo, provava-me possuir um bom sentido de observação e uma boa capacidade de concentração.
Conseguir bons resultados era esperado, fazê-los apaixonarem-se pelo filme também era esperado, ter alguns meninos a pedirem-me o filme para o reverem em casa também era esperado… tudo milagres, mas esperados.

O que eu não contava era com o que um aluno meu fez… interessado numa rapariga do 9ºano, decidiu inspirar-se na personagem da Amélie, profícua em estratagemas rebuscados, e criou uma série original de enigmas e pistas para guiar a tal rapariga ao seu coração.
Esse resultado, confesso, não esperava eu! E mais, não esperava que o rapaz confiasse em mim, ao ponto de me mostrar o seu plano, para que eu lhe desse a minha opinião. Posteriormente veio ainda a contar-me o êxito retumbante da sua estratégia e a agradecer-me o facto de, indirectamente lhe ter mostrado o caminho que ele precisava. Ele sabia que para conquistar a menina, tinha de a surpreender. Este desenvolvimento foi um milagre inesperado, Cumpriu-se o pressuposto óbvio, o de um aluno interiorizar o que aprende na escola e conseguir aplicar isso no seu contexto pessoal. É claro que o rapaz usou um assunto pouco académico e pô-lo em prática num contexto nada académico… mas usou o cérebro, pensou, imaginou, foi criativo e, mais importante que tudo isso, usou o coração, fez algo muito seu com gosto e alegria. Isso para mim é um inesperado milagre.

Margarida neves

Mira, Janeiro de 2007