quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Uma história de cabeças



Anémonas





À Filinta, com quem alinhavei estes pensamentos

Anémona s. f.
planta da fam. das Ranunculáceas, cultivada para fins ornamentais;
a flor desta planta.
(Do gr. anemóne, pelo lat. anemóne-, «id.»)

anemo-
elem. de formação de palavras que exprime a ideia de vento.
(Do gr. ánemos, «vento»)

an-
pref. que exprime a ideia de privação, separação;

Mona s. f.
(pop.) cabeça.


- Ó professora, sabe que fica muito mais bonita quando pára de respirar?
- Stôra, temos de escrever ISSO tudo? Mas isso dá muuuuuito trabalho!
- Ler ISTO? Que seca!...
- O que eu penso da política ( da sociedade, da ecologia, da paz mundial, das espécies em extinção...)? SEI LÁ! Nem me interessa!...

São estas algumas das preciosidades que eu ouço dos meus alunos e alunas, adolescentes que frequentam o 8º ano de escolaridade. Considero-as bastante representativas do calibre cognitivo e cívico dos nossos cidadãos de amanhã.
Há dias, durante um Conselho de Turma intercalar, dei por mim a pensar que muitos destes meninos e meninas têm as cabecinhas vazias, o que faria deles uma espécie de anémonas. Enganei-me, claro, porque o que eu queria dizer era “medusas”, que é como quem diz “alforrecas”, aquelas graciosas criaturas marinhas em forma de pára-quedas, que parecem bailarinas de Degas.
No entanto, embora ciente dele, vou persistir no engano, já que a palavra “anémona” me abriu um interessante caminho de pseudo-análise linguística.
Se não, vejamos: a palavra em causa é composta por um prefixo, an- que exprime a ideia de privação ou separação (como em analfabeto); segue-se uma vogal de ligação, e, que também poderemos baptizar com o pomposo nome de vogal epentética e, finalmente, uma palavra base, mona, que em bom português popular significa ‘cabeça’.
As anémonas serão, portanto, as criaturas desprovidas de cabeça, esta geração que nós, adultos (e ex-anémonas de memória curta) classificamos de “vazia”. A corroborar esta teoria, há ainda o facto acrescido de anemo- ser um elemento de formação de palavras que exprime a ideia de vento. Ora, os nossos adolescentes, para além de parecerem não ter cabeça, não se comportam também como umas autênticas “cabeças de vento”?

Margarida Neves
Castelo de Paiva, 21 de Fevereiro de 2006







Bitolas





Ao Sérgio, que me explicou o que era uma bitola




Bitolas são objectos que servem o propósito de assegurar uma determinada medida em objectos feitos à mão. Contava-me há dias um amigo, pescador por paixão, que há uma bitola para a confecção de redes de pesca, sendo que a medida de lado de cada quadrado da malha dependerá do tamanho médio do peixe adulto que se pretende pescar. “Pela mesma bitola” é uma expressão que significa ‘seguindo os mesmos critérios’, ou seja, pelas medidas predefinidas, para que elas sejam as mesmas em todos os casos.
No entanto, seguindo o método que usei no texto anterior, apetece-me continuar a fazer análises pseudo-linguísticas e também esta palavra, bitola, se presta em absoluto a uma desmontagem…

bi- pref. que exprime a ideia de dois, duas vezes.
(Do lat. bi-, de bis, «duas vezes»)

bit - s. m. palavra inglesa que designa a unidade mais pequena que se pode armazenar na memória de um computador;

tola - s. f. (pop.) cabeça.
(De orig. incerta)

Bitola - s. f. medida-padrão; modelo;
(fig.) igualdade de posição social ou mental;
inteligência;
capacidade;


olá! - interj. que designa chamamento, espanto ou afirmação.
(Do cast. hola!, «id.»)

Li numa crónica brilhante do Miguel Esteves Cardoso que os adultos só queriam o bem para os seus filhos adolescentes, só que esse ‘bem’ não era bem o ‘bem’ que os filhos queriam…” Essa do ‘bem’ não ser bem bem o ‘bem’ que se quer explica-se pela análise da Bitola!
O adulto quer tecer um determinado ‘bem’ em redes de malhas apertadas (de segurança e responsabilidade) e o adolescente prefere que essas redes sejam tecidas, sim, mas menos apertadas (com menos controlo, menos policiamento e menos perguntas) Os pais, tolhidos pelo medo, querem-nos por perto, debaixo de olho e os miúdos, fascinados pela descoberta querem-se livres.
E nessa guerra, passada a determinar medições de bitolas, lá vão crescendo e tornando-se jovens adultos. E um dia, para espanto de quem tanta vez abanou a cabeça em descrédito… o bit cerebral acorda para o mundo das responsabilidades e revela o que andou oculto durante o longo nevoeiro da adolescência… que eles pareciam anémonas, desprovidos de mona, mas afinal tinham uma bi-tola! Duas cabecinhas, uma das quais pronta a funcionar em todo o seu furor cognitivo!
É nesse momento glorioso que nós, ex-anémonas de memória curta e donos de uma bi-tola que serve para nos orientarmos na vida, mas também para ocasionalmente nos condoermos da ausência de bits nos cérebros dos nossos meninos, é nesse momento, dizia, que, ao vermos uma das tolas revelar-se, exclamamos com espanto e alegria…
-“ Ah, felicidade!!! Afinal havia bit… olá!!!!!!!!!”

Margarida Neves
Figueira da Foz, 8 de Fevereiro de 2007