quinta-feira, janeiro 03, 2008

Uma história de tranquilidade


A Tranquilidade de nuvens escondidas

O Mário L. tem trinta anos. É electricista e mora perto de mim, numa povoação que se situa entre Benavente e Coruche. A mulher dele tem 23 anos e trabalha como caixa num supermercado. Têm duas filhas, uma com cinco anos e outra com três. O Mário é um amigo nosso e é um cromo do melhor que há. É um tipo magro, relativamente bem parecido, muito bem disposto, sempre sorridente, como se a vida lhe corresse sempre bem e não tivesse motivos que lhe provocassem aflições na alma (meu Deus, eu sou diametralmente oposta.... como eu queria ter uma costela de Mário!)
Como se vê pela idade da mulher dele e das miúdas, ela foi mãe muito cedo... aquilo foi uma coisa assim tipo pedofilia (eu é que o chateio com isso, digo-lhe que ele devia ir preso), porque ele era muito mais velho e meteu-se com ela que tinha 16 anos e depois ela ficou grávida e andou muitos meses até descobrir ou revelar… Foi tudo muito complicado, digno do melhor enredo de telenovela.
A mulher do Mário é uma pessoa estranha. Só estive duas vezes com ela e das duas vezes não consegui conversar com ela. Pareceu-me ausente, indiferente, embora a ocupar-se das miúdas, desconfio que é pouco inteligente, não lhe achei interesse ou fascínio nenhum.
A segunda vez que a vi, foi no verão de 2006. Foi num jantar no Algarve com dois casais que lá estavam de férias e os quatro miúdos deles. Foi aí que senti mesmo esta impossibilidade de chegar a ela, pois com a esposa do outro casal, entendi-me muito bem. E ela não participou na conversa geral, é mesmo uma pessoa estranha, impenetrável ou então básica...
Pessoas mais directas dizem que “ela não bate bem da bola”, o que justifica estar com o Mário, já que ele é um cromo e tanto.
Há quatro dias, como costuma fazer muitas vezes, o Mário apareceu cá no escritório, para cravar um cigarro (fuma ocasionalmente) e falar um pouco, às vezes vem pedir para tirar uma fotocópia ou mandar um fax. Ele é um raio de sol, porque anda sempre a sorrir, o problema são as nuvens que ele ignora. Nesse dia, eu estava bem disposta e conversadora e como gosto muito dele, comecei por perguntar pelas miúdas e pela mulher e já não me lembro como, a conversa derivou para radares de velocidade e apreensões de carta e diz-me então ele que teve a carta apreendida no ano passado. Eu perguntei-lhe em que altura isso tinha acontecido e ele diz que foi entre Março e Setembro... Eu, (já apreensiva) "Mas, olha lá, nessa altura estive eu contigo no Algarve! Como é que foste para o Algarve sem carta?" E ele, "Ah, isso não me incomoda nada, quero lá saber!" E eu (horrorizada) "Mas férias é período de descontracção, de calma, como é que conseguias andar tranquilo????" E ele (sem conseguir entender a minha angústia) "Mas eu andava tranquilo! Ando sempre!" Aí, eu tive uma ideia e perguntei "A tua mulher conduz?" E ele responde "Conduz sim, e todos os dias!" Nessa altura eu respirei de alívio e fiz uma imagem mental do Mário mesmo de férias e a mulher com a tarefa da condução a seu cargo e o meu mundo voltou a organizar-se. Mas essa imagem mental durou poucos segundos e corresponderam à pausa que o Mário fez no seu discurso. Porque ele continuou a frase que afinal tinha deixado a meio. E então ele terminou-a: "Ela só não tem é carta!"
É como digo, quem me dera ter uma costela de Mário!



Margarida Neves
Benvente, Janeiro de 2008