quarta-feira, agosto 27, 2008

Uma História de Medo




Sem medo


Na terra onde moro, há um homem que é uma personagem de romance. É um homenzarrão, de pés enormes, estatura imponente e negro como um tição. Chama-se Semedo e anda aí pelas ruas numa carrinha vermelha que ainda deve ser uma parente afastada das “furiosas Hiaces” que fustigam as ilhas de Cabo Verde, fazendo o serviço de táxis comunitários ou de miniautocarros. No caso do Semedo, a carrinha dele serve-lhe apoio no seu trabalho.
O Semedo é um cabo-verdiano de Santiago, já muito bem adaptado a esta terra ribatejana. Frequenta os cafés, fala com a população, conhece toda a gente, é uma simpatia. Hoje, dando-se finalmente o acaso feliz de eu trazer vestida uma t-shirt com o mapa de Cabo Verde, uma das relíquias que trouxe dos meus três anos passados lá, chegámos finalmente à conversa que há tanto me apetecia.
O homem é de S. Jorge de Órgãos, terra que deve o seu nome a uns rochedos que se assemelham aos tubos de um órgão de igreja. Passei lá várias vezes, em viagem entre a cidade da Praia e o Tarrafal. Referi-lhe um pormenor desse trajecto que ele confirmou: de lá, da terra dele, quando vamos para o Tarrafal, vemos à nossa esquerda o pico do vulcão do Fogo a flutuar num ninho de nuvens. Na altura, esse detalhe impressionou-me pois era à ilha do Fogo que eu chamava “casa”.
O Semedo é o Coveiro de cá e já começou a fazer parte do espírito jocoso desta gente, que em conversas sobre a vida, não se escusa a fazer referências a este homem:

_”Eu não vou a funerais, só hei-de ir ao meu, e isto se o Semedo for mais teimoso que eu!”
- "O Semedo, com aqueles pés grandes, quando me calcar a terra em cima, vai-me partir as costelas!”

- Escondam-se!!! Vem aí o Semedo e parece mal disposto!" - (esta é particularmente inverosímil, pois o coveiro anda sempre bem disposto, como é típico dos Cabo-verdianos).

No entanto, ele próprio alimenta e apimenta este espírito de brincadeira com uma mestria de fazer inveja:
Ele apresentou-se assim:

-“ Eu sou o Semedo, aqui todos me conhecem… até os cães! Só não sei porque fogem de mim… hehehehe”

O que eu acho mais divertido nesta história é o facto de o nome dele, “Semedo”, propiciar um trocadilho tão apetecível como “”sem medo”.
Dizia-me há dias um ribatejano, agricultor, criador de vacas e dono de ceifeiras e outras máquinas afins, que, pelo que percebi, deve ser filósofo-poeta nas horas vagas:

-“Eu queria olhar para o Semedo sem medo…mas ainda é cedo...”

Escrevo este último parágrafo algum tempo depois de ter escrito o texto inicial.
O Semedo, homem nascido em 1947, aparentemente forte e saudável, com planos de futuro e até viagem marcada para ir a Santiago no mês de Outubro… não teve medo.
Deixou-nos no dia 8 de Agosto, levado por um coração traiçoeiro. Deixou Benavente mais pobre e deixou-me a mim com a enorme frustração de perder um amigo recente, cuja atitude de entrega já antevia tantas conversas saborosas sobre a “sabura” da sua terra.

O Semedo afinal guardava no nome dele a absoluta verdade: ele é que não tinha medo. E não achou cedo.

Margarida Neves
Benavente, 17 de Julho de 2008
Benavente, 27 de Agosto de 2008