sexta-feira, agosto 28, 2009

Uma história de sobrevivência

De cinco a seis










À minha amiga Leonor, uma sobrevivente.


Foi nesse dia que soube a notícia. Assim, sem mais rodeios, de forma cruel, como o golpe de um bisturi. Lembro-me que ele se levantou calmamente depois de mo dizer, colocou uma caixa de lenços de papel à minha frente e disse:
Chore.
E eu fiquei ali no vazio, a fitar sem ver o rio azul que atravessa preguiçosamente a cidade de Coimbra. O mundo acabava de cair com estrondo em cima da minha cabeça e eu não reagia, estava entorpecida. Fitei a caixa de lenços inúteis à minha frente, como se aguardasse uma reacção minha.
Há que reconhecer que o oncologista é correcto. Só tem de me dar a notícia e lenços – estava tramado se tivesse de consolar todos os seus doentes…
Pensei.
Consegui finalmente dizer o nome dele, do mal que crescia em mim. Murmurei um palavrão…
Ele apanhou-me. O filho da mãe do cancro apanhou-me.
Naquele momento, percebi que não estava preparada para morrer – não naquela altura da minha vida, aos 32 anos. Vieram-me à memória os sorrisos luminosos dos meus três filhos, o calor do abraço do meu melhor amigo, que era também o meu marido, as gargalhadas dos meus pais quando brincavam com os netos. Tinham cinco netos, dois do meu irmão e três meus – três rapazes e duas raparigas.
Tenho de vencer isto
Decidi.
A minha família precisa de mim. Os meus amigos precisam de mim. Não me posso dar ao luxo de os abandonar.
Uma força inundou-me de luz. Levantei-me
Vou vencer isto
Declarei em voz bem alta, para que o inimigo me ouvisse.
Saí do consultório e fui para casa, para consolar e dar força às pessoas que iriam saber nesse dia da luta que íamos travar.
Pedi na recepção para falar com o oncologista para marcar a operação e a quimioterapia. Se ia haver luta, que começasse já.
A caminho de casa, tomei uma resolução. Ia tratar de um pormenor, antes que ele tratasse de mim. Cumprimentei a cabeleireira e, antes que ela assumisse que eu queria o corte de sempre, pedi-lhe que me cortasse o cabelo a pente 3.
Mulher de coragem!
Sorri para o espelho
…nem tu sabes quanto!...
Parei numa loja para comprar uma boina, uma peruca bastante verosímil e uns lenços de padrões alegres. Primeira batalha ganha.

Cheguei a casa no momento em que almofadas voavam pela sala. Os meus três saltaricos moíam a paciência à minha mãe. Olhou-me, intrigada.
Filha! Vais para a tropa?!
A mãe vai para a tropa, a mãe vai para a tropa!
Os gémeos marchavam pela sala, com a pequena a segui-los.
… um dois, um dois, esquerda direita, esquerda direita…
A minha mãe não perdeu uma oportunidade para fazer uma das suas piadinhas:
O teu marido está no duche – vai-lhe fazer a recruta…

Ouvi à distância, uma desafinação a plenos pulmões. Comparado com o meu marido, o bardo do Asterix é afinadíssimo. Pousou o microfone, desligou a água e olhou para mim com um olhar interrogador
Tenho uma boa notícia!
Disparei.
Foste promovida a militar de alta patente!
Sorri-lhe
Não, melhor, vou-me curar de um cancro da mama.
Saiu do duche, numa calma aparente e agarrou-me os ombros e fitou-me, com olhos cheios de preocupação.
Promete-me que vais mesmo.
Vou.
Respirou fundo e abraçou-me
Vamos!

Ao jantar participámos aos nossos filhos a novidade. Falámos calmamente, sem alarmismos. Eles ficaram em silêncio e um dos gémeos perguntou se eu ia ficar boa.
Vou sim.
Vai sim, filho.
Então está tudo bem!
Respiraram os três de alívio.
Eu gosto muito de ti, mamã
Afirmou a pequenita, com a certeza dos seus três anos.
Nós também.
As vozes dos gémeos em coro terminaram a conversa.

A operação correu bem. A minha mãe e o meu pai acamparam lá em casa para cuidarem dos gémeos e da pequenita.
Começaram os tratamentos, cada sessão uma batalha dura. Cada sessão vencida, um gosto de vitória, uma promessa de final feliz.
Para não assustar os meus filhos, propus-lhes um jogo que tinha aprendido num filme. O meu marido, todo entusiasta, juntou-se ao desafio: cada dia tínhamos de seleccionar o momento alto e o momento baixo que nos tinha acontecido. Aplaudíamos os momentos altos de todos e analisávamos preventivamente os momentos baixos.
Hoje marquei um golo, mamã!
E tive medo de uma iguana…
Eu comi os cereais todos, mas parti a tigela.


Eram assim as conversas ao jantar. Longe de ambientes macambúzios, longe do inimigo que espreitava. Dar-lhe importância seria fortalecê-lo – era essa a nossa convicção.
Foi por essa altura que conheci o Ismael. Mulato de Cabo verde, era órfão e estava internado no IPO. Era natural da ilha do Fogo e descendia de um garboso francês que fora exilado nessa ilha e tinha espalhado profusamente os seus genes. O Ismael Montrond era de um exotismo deslumbrante. Pele dourada de mulato claro e olhos de um azul intenso. Era um rapazinho triste, em busca de um dador compatível que lhe travasse a leucemia. Para o confortar, integrei-o na minha família e iniciei-o no ritual dos momentos altos e baixos. Às vezes levava-o lá para casa e jantava connosco, antes de o levarmos de volta ao IPO. Esses eram, invariavelmente, os seus momentos altos.
No início, o Ismael era muito tímido e mal se atrevia a falar o seu português vacilante. No entanto, depressa se habitou às guerras de almofadas com os gémeos e a tomar chá com as bonecas da nossa pequena. Percebi que se tinha integrado na família quando todos nós começámos a usar palavras em crioulo sem darmos por isso.
Aconteceu entre nós e o Ismael uma osmose, um fenómeno saudável, próprio de náufragos na mesma ilha.
Os meus tratamentos terminaram, o cabelo começava a crescer, a mama ia ser reconstruída. Aparentemente, estava a vencer a batalha. Mas continuei a visitar o IPO diariamente para ver o Ismael. O dador tardava em aparecer, mas ele era forte, resistia e tinha sempre um sorriso para mim.
Também ele teve um final feliz. Finalmente transplantado, recuperou rapidamente e veio passar uns tempos com a nossa família, antes de regressar ao orfanato na sua ilha natal.
O Ismael ficou connosco, tão nosso filho como os três biológicos. Com a minha doença ganhei mais um filho; com a doença dele ganhou uma família. Ambos passámos um momento baixo, mas compensado, de longe, por um permanente momento alto.
De cinco passámos a seis, de felizes passámos a muito felizes. Muito mesmo, - Hodje nos tá tchéu feliz.
Margarida Neves
Benavente, Agosto de 2009