sexta-feira, setembro 04, 2009

Uma história de delírio


O estrangeiro


Um olhar perdido, alheado da realidade. Um sorriso sem razão aparente (talvez ditado pelas cores deslumbrantes do labiríntico delírio).
Ali estava ele, criatura de Deus, verdadeiro inquilino da ilha do Reino dos Céus. Na mão um livro lido e relido. Sorrio ao ver o título. O estrangeiro de Albert Camus. O relato de um homem enclausurado na sua própria redoma, separado do convencional senso comum.
O meu companheiro naquela sala de espera do Júlio de Matos será, por ventura, o leitor mais habilitado para entender as angústias do estrangeiro de Camus.
Ainda não o sabia, mas ia começar um dos diálogos mais interessantes da minha vida. Enquanto esperávamos a consulta com a médica, por acaso a mesma, matámos o tempo a conversar (matou ele, eu investi).
Chegou o sol – disse – e vai ter de ficar no quarto ao lado. Ouvi dizer que veio para ficar… mas não trouxe bagagem.
uau… isto promete – pensei, os meus olhos já brilhantes de antecipação, pronta para mergulhar nas cores daquele delírio. - O que se seguirá à meteorologia?
Gostas de chuva?
– o olhar dele concentrado, a ver se o sol partia e o quarto vagava.
Adoro chuva! – respondi-lhe, a memória presa aos três anos de Cabo Verde – vivi num país seco e preciso muito do verde.
Muito prazer, eu sou Verde
– um aperto de mão inesperado e uma guinada no tema da conversa – o Sporting ontem perdeu – um risinho cheio de ironia – mas perdeu com tranquilidade.
E tu, gostas de chuva? Uma pergunta a prendê-lo à realidade. Ficou preso à ironia.
Às vezes é uma seca.
A chuva mata a seca
– contrapus.
A seca chama-me a mim – completou e rematou.
Virou a página da conversa
Gosto de ler, adoro livros
Gostas? Fazes bem, a leitura faz falta a toda a gente. Sou professora de Português e sempre acreditei nisso!
Então explica-me lá porque razão separado se escreve tudo junto e tudo junto se escreve separado…
Mas onde vai buscar ele estas coisas??
– e eu desejosa que médica se demorasse muito até chamar um de nós. Aquilo estava do melhor!
Ancorou-se então à realidade e contou-me a sua história. Tive dificuldade em acreditar no que ouvia, por ser ele a contá-lo e por ser tão incrível, um enredo delirante. Mas no hospital confirmaram-me a sua história. Dava para entender porque razão se tinha exilado voluntariamente num mundo só dele.Num assomo impressionante de lucidez, contou
Eu era professor de História e fui dar aulas para a Universidade de Campinas, a convite do Instituto Camões. Foi lá que conheci a Melissa. Filha de brasileiros e neta de italianos era professora assistente de Antropologia. Na mesma universidade. Apaixonámo-nos e casámos. Quando eu a tentava convencer a virmos para Portugal, surgiu-lhe o convite para ir estudar no terreno uma tribo da Amazónia. E foi isso que aconteceu – perdi-a. Ela despojou-se da sua identidade e juntou-se àquela tribo. Cortou o cabelo como eles, pintou o rosto, adornou-se com bocados de madeira e, acredito, diz-me que é feliz naquele mundo puro e verde.
Perdi a fé na vida. Voltei para cá e entreguei-me à solidão. Nunca mais fui alguém.
Lágrimas nos olhos, um brilho de desvario.
Se chover nasce verde, verde é bonito.
Verde é esperança…
- procurei confortá-lo.
Para mim não – a esperança perdeu-me no meio do caminho. Gostas de poças de água?
Depende, se escorregar, molho-me.
É bom
– esconde as lágrimas.
A enfermeira interrompeu-nos e chamou-o para a consulta. Que ironia, o nome deste homem!
Senhor Felisberto Verde, gabinete 12…


Margarida Neves
JM, 27 de Agosto de 2009