sexta-feira, outubro 16, 2009

Uma história de árvores


Paraíso alienado







O Júlio de Matos continua a ser, para mim, a ilha do Reino dos Céus.
São nove horas de uma manhã de Outono, banhada de um sol dourado que se reflecte docemente nos relvados e no arvoredo, e estou na esplanada a ver os aviões que se fazem à pista. É sempre bom regressar a esta ilha, este paraíso alienado.
Na sala de espera, aguardo a minha consulta. As pessoas ao meu redor são peças do nosso puzzle social: pessoas novas, de meia-idade, velhas, várias raças, múltiplos credos…
Uns lêem, outros olham a televisão com interesse, outros ainda miram-na com expressão estupidificada. Alguns têm um olhar perdido, afogados numa imensa dor, à qual parece resistirem com a muralha da indiferença.
O que se passará na cabeça desta gente? Estarão a pensar no resultado do jogo da selecção? Nas compras que têm de fazer para o jantar de logo à noite? Na tristeza de ver a vida fugir-lhes debaixo dos pés, enquanto se atarefam a ganhá-la?
E os alienados, os de olhar perdido (os mais fascinantes) em que pensarão eles?
Em que sentimentos e pensamentos navegam esses? Flutuam, com certeza buscando à deriva uma qualquer salvação redentora. Ainda bem que deram à costa desta ilha do Reino dos Céus. Esta gente perde-se em que pensamentos? No último livro que leram? (as histórias dos livros fazem-nos sofrer menos do que as reais…) Lembram a última sinfonia que ouviram? Naqueles acordes harmoniosos , tão reconfortantes para quem navega à deriva?
Esta gente, de alma artística e tão longe dos padrões da normalidade fazem-me sempre lembrar as árvores retorcidas, diferentes das outras direitinhas, verticais, de tronco liso, sem contornos e sem ramos retorcidos. Essas são o espelho das pessoas ditas normais – tão aborrecidas e boçais, sem oscilações de génio, sem destaque na monótona floresta social.
Pelo contrário, as árvores retorcidas primam pela diferença, são muito mais complexas, são monumentos vivos de tanto sofrimento. Os seus ramos tortos, buscando o céu, indicam as viragens de uma caminhada tortuosa. O tronco rugoso é testemunha das cicatrizes, é uma capa de protecção na qual se refugiam da dor.
Sem que eu dê por isso, mergulhada que estou nos meus pensamentos, uma senhora senta-se ao meu lado e dá-me uma cotovelada cúmplice. Olho-a espantada e, finalmente, reconheço-a. Moramos na mesma terra, ela trabalha no hospital e é irmã de um poeta muito querido no Ribatejo. Tem um nome genial, uma autêntica antítese: chama-se Maria da Paz Guerra. Pelo que me conta, explicando a sua presença naquele sítio, o irmão dela, o poeta, é doente bipolar e vem regularmente à consulta de rotina.
Desta vez, acompanhou-o e veio ter comigo quando me reconheceu.
De repente, faz-se luz no meu espírito: o poeta, claro. Recentemente publicou um livro de poemas e eu até fui à apresentação na biblioteca da nossa terra. A alma sensível, o temperamento de génio, o talento imenso, a criatividade brilhante, os longos tempos de reclusão. O poeta, João Maria Guerra, é, afinal, doente bipolar. Claro, faz sentido.
Conheço bastante bem a doença bipolar. Indivíduos oscilantes entre uma tristeza avassaladora e uma alegria criativa e brilhante. Interessei-me pelo assunto e perguntei à Maria da Paz como estava então o irmão.

Felizmente bem – tem andado muito estável e capaz de escrever. Mas precisa da segurança destas consultas de rotina.

Como eu o compreendia! As consultas, as visitas à ilha do Reino dos Céus são a âncora do nosso navegar.
Conto-lhe a minha teoria da ilha e ela concorda logo comigo. Louva-me a criatividade e a argúcia dessa analogia. Efectivamente, os frequentadores do Júlio de Matos são, como a minha teoria defende, os legítimos merecedores do Reino dos Céus.
Fala-me do irmão. Nota-se a paixão que tem por ele, o orgulho que sente em ser sua irmã. Na casa dele não há cão nem gato que passe fome. Há sempre uma tigela de comida na soleira da porta. Convida toda a gente para a sua mesa. A sua mulher, Ofélia (que nome tão certeiro para a esposa de um poeta!) adora-o e aceita estas excentricidades, a generosidade imensa, deste homem de brandos gestos e olhos luminosos.
Maria da Paz interrompe este relato apaixonado e interessa-se por mim.

E tu, minha querida, que fazes aqui?

Conto-lhe o meu mal, o quanto me faz bem vir ao Júlio de Matos, o quanto ando bem, estável, serena, em paz.

És também uma Maria da paz…

Sorrio-lhe

Sou… graças a Deus, sou. Finalmente.

Ficamos em silêncio, numa serena homenagem àquele lugar abençoado, refúgio de tantas almas perdidas.

Vamos, mana?

O poeta João Maria Guerra, essa maravilhosa e imponente árvore retorcida, toca ao de leve no ombro da Maria da Paz, arrancando-nos ao nosso silencioso entendimento.

João, deixa-me apresentar-te a Margarida. Ela é professora de Português e de certeza que vais adorar conversar com ela!

O poeta, mostra logo a sua hospitalidade

Margarida, muito prazer! Venha tomar chá lá a casa. Eu e a Ofélia adoramos receber pessoas…

Maria da Paz levanta-se, pega no braço do irmão e despede-se.

Minha querida homónima… fica bem!

Uma auxiliar aproxima-se de mim

Margarida? Gabinete 12.

Levanto-me e olho com ternura para aqueles dois irmãos que se aproximam da porta de saída, uma árvore direita, de braço dado com uma árvore retorcida.
Dirijo-me ao gabinete 12, onde a minha médica me espera. O gabinete 12, aquele cantinho na ilha do Reino dos Céus, esse meu paraíso alienado.

Vim mais tarde a falar de poesia com o João Maria Guerra, em casa dele, em frente a uma chávena de chá.
Mas isso é outra história.

Margarida Neves
Júlio de Matos, 15 de Outubro de 2009

quarta-feira, outubro 14, 2009

Uma história de paciências

















De Ampulhetas e Clepsidras



Ao meu querido André João, lembrando mais uma das nossas conversas.

Já vos ocorreu, por que razão, quando nos referimos à paciência, usamos verbos como ter, gastar, perder, esgotar? Fica-se com a sensação de que a paciência é uma substância, como a água de uma clepsidra, ou a areia de uma ampulheta. Sendo assim, será que a paciência, depois de esgotada, se renova? Será que é sempre a mesma e se renova assim, vindo do nada, como se fosse uma substância ciclicamente regenerada?
Efectivamente, se alguém tem paciência é porque possui algo palpável e se a perde, diminui a quantidade desse algo, e, no final, se ela se esgota, desaparece de todo.
O dicionário regista na sua entrada “Paciência”:



s. f.
virtude que consiste em suportar os males ou os incómodos sem queixume e com resignação; qualidade de paciente; perseverança;
interj. designativa de resignação;
Paciência de Job: grande resignação;
Paciência de Santo: grande paciência



Pela referência ao bíblico Job e ao Santo, podemos verificar que essa “água” ou “areia” têm um cariz divino, mas que são, de facto esgotáveis, já que se diz também que “é de esgotar a paciência a um santo”.
A minha pergunta imediata é se todos nós fomos divinamente agraciados com a mesma quantidade de paciência ou se uns, os impacientes, já nasceram com menos do que os outros, os pacientes.
Admitamos que a paciência é a substância presente numa clepsidra e consiste na água que escorre lentamente, ou então é a areia que existe dentro de uma ampulheta. No entanto, essa clepsidra ou essa ampulheta têm uma pequena comporta que nós próprios, donos dela, gerimos (consoante a nossa generosidade ou entrega) e que vai doseando a saída da água ou da areia.
Assim, a nossa paciência vai-se esgotando, vai inevitavelmente escorrendo conforme o grau de abertura da nossa comporta. Assim ela se esgota completamente quando o massacre abre de vez as comportas.
Mas a paciência, esse Litro de água, esse Quilo de areia, volta a existir na nossa clepsidra ou ampulheta, (na verdade ela esteve sempre lá, na parte de baixo, parada, na sua forma inactiva).
E quando volta a poder escorrer e gastar-se, é porque a nossa generosidade permitiu a reviravolta, a regeneração. Mudam-se ideias, vira-se a clepsidra ou a ampulheta ao contrário e inicia-se novo ciclo de esgotamento.
E a nossa cabeça é precisamente redonda, para que possamos mudar de ideias, alterar os pontos de vista, renovar a paciência, enfim, dar espaço à ampulheta para que ela se volte e fique, novamente, na sua parte activa, cheia de areia, ou seja, de paciência.

Margarida Neves
Benavente, 14 de Outubro de 2009

domingo, outubro 11, 2009

Uma história comercial


Franchising e Consignação

Há dias, ocorreu-me a seguinte ideia: de uma forma simplista, existem dois tipos de, digamos, relação hierárquica comercial entre marcas e lojas, sendo elas o Franchising e a Consignação.
Enquanto no Franchising a loja se compromete em absoluto e em exclusivo a vender apenas artigos da marca que representa, sendo que os artigos não vendidos não podem ser devolvidos à procedência, na Consignação é vendida a marca com a qual se tem um relativo e parcial compromisso, mas o que não é vendido retorna à fábrica da marca que, em parte, se representa. Ao contrário do Franchising, a Consignação não é uma relação de absoluta e exclusiva fidelidade.

Assim também as relações humanas.

O dicionário, a propósito de Consignação, diz-nos o seguinte:
Consignação: substantivo. feminino.
depósito de valores em cofre oficial para pagamento de despesas obrigatórias;
entrega de mercadorias que o produtor faz ao negociante para este as vender por conta
daquele;

Quando a minha avó Amândia e o meu avô José Balseiro se entregaram um ao outro em matrimónio em 1935, fizeram-no na modalidade de Franchising. Comprometeram-se em absoluto e exclusivo a serem apenas um do outro e a dedicarem a sua vida a um matrimónio que apenas a morte separaria.
A minha avó, órfã de mãe, desde a gripe espanhola de 1918, não poderia ser devolvida ao pai, se o meu avô não a quisesse mais. Na saúde e na doença tinham prometido um ao outro ficarem juntos. E tiveram muitos períodos de adversidade, mas ultrapassaram-nos juntos, dentro do espírito que eu penso ser o do verdadeiro matrimónio. Espírito esse que os nefastos e modernos ventos da mudança degradaram até se chegar a estas lamentáveis relações de Consignação.
Hoje em dia, qualquer desentendimento, qualquer ridícula incompatibilidade de personalidades é motivo de separação, de lares desfeitos, de crianças a crescer sem terem os pais juntos, sem terem a harmonia de uma verdadeira família. Não me venham dizer que crescem felizes, porque, como professora, sei ver as diferenças entre filhos de famílias e filhos sem pai ou mãe por perto para o beijo de boa noite. Vejo pelo equilíbrio emocional dos meus três sobrinhos o quanto eles (e eu) podem agradecer o equilíbrio da sólida relação que o meu irmão e a minha cunhada construíram.
Nestas relações tão modernas de Consignação, o matrimónio é apenas um compromisso relativo e parcial que dura enquanto durar, os casamentos duram enquanto durarem e as pessoas, alucinadas saltam de cama em cama, de casa em casa, de amor em amor, num frenesim degradante. Quando a Consignação termina, o parceiro que supostamente era para toda a vida é descartado e devolvido à providência e os filhos do moribundo amor de ambos são colocados na prateleira que esse fosso entre os pais cria. Sendo a Consignação uma relação de fidelidade, apenas relativa e parcial, será essa falta de fidelidade uma das maiores causas da ruptura do tal casamento que era para ser para sempre e foi apenas até que o juiz os separou.
Sabemos bem, neste mundo promíscuo, que é essa a triste realidade.

Termino estas minhas divagações com a letra de uma belíssima canção cantada por Adriana Calcanhoto que é bem exemplificativa de uma Consignação que chegou ao fim:

Devolva-Me

Rasgue as minhas cartas e
Não me procure mais
Assim será melhor, meu bem.
O retrato que eu te dei,
Se ainda o tens não sei,
Mas se tiver, devolva-me.

Deixe-me sózinho porque assim
Eu viverei em paz,
Quero que sejas bem feliz
Junto do seu novo rapaz.

Rasguei as minhas cartas e
Não me procure mais
Assim vai ser melhor, meu bem.
O retrato que eu te dei,
Se ainda o tens não sei,
Mas se tiver...
Devolva-me.
Devolva-me.
Devolva-me.

Conseguem sentir a tristeza deste fim? O desgosto de não ter havido solidez e persistência para permanecerem juntos?
Eu consigo…


Margarida Neves
Benavente, 2008/ 2009