quinta-feira, novembro 26, 2009

Uma história de psicologia


Psicologia canina

À Manu, que tão bem educou o nosso Max.



Tive o privilégio de viver dois anos com o Max, um delicioso e temperamental Rotty, cuja educação laboriosa esteve a cabo da sua persistente dona, a minha amiga Manu.
Desde muito pequenino, o Max demonstrou ser uma criatura inteligente, mas teimoso até à medula e que usava a sua esperteza para tentar ludibriar a nossa severa vigilância.
Toda a vida tentou vencer os nossos pequenos duelos – toda a vida, todos os dias. Era preciso uma persistêcia à prova de bala para não permitir que ele nos vencesse pela exaustão. Nisso a Manu tem todo o mérito, porque sempre conseguiu a sua supremacia perante aquele adorável teimoso.

Max: E porque razão tinha de ser sempre a dona ou a co-dona a ganhar?
Não podíamos dividir as vitórias das nossas teimosias democraticamente?

O Max, como intuitivo cão de guarda que era, dormia sempre à porta do quarto da dona, para que ela pudesse descansar na certeza de que ninguém a perturbaria.

Max: Claro, ela era a minha dona querida e tomar conta dela era o meu trabalho!

No entanto, numa ocasião em que uma amiga nossa precisou de ficar uns dias em nossa casa, o Max transferiu o seu posto de guarda da porta do quarto da Manu para a porta do quarto dessa amiga.
Na minha modesta opinião, de estudiosa da psicologia canina, essa atitude deveu-se a uma carinhosa concessão que ele nos fez… nós confiávamos na nossas amiga, mas ele nem por isso.

Max: Pois é, minhas queridas, vocês confiam nessa moça e acham que ela é vossa amiga, mas eu sou cauteloso e prefiro guardar a porta dela. Não para que nada de mal lhe aconteça, mas para que ela não vos faça mal a vocês – vocês são umas doçuras, mas são muito ingénuas. Aqui o Max prefere jogar pelo seguro! Óbvio, não é?

O Max, apesar de se ser um temível Rottweiler, era um cão muito doce, um gigante bonacheirão. Os nossos amigos nunca tiveram medo dele, nunca se sentiram intimidados pelo seu tamanho ou pelos seus caninos enormes e assustadoramente afiados.
No entanto, nunca conseguimos que ele se portasse civilizadamente com o simpático Sr. Jerónimo! Todos os dias ele vinha a nossa casa entregar o correio e todos os dias o Max lhe rosnava e fazia com que ele se afastasse respeitosamente. Nem o facto de nós o cumprimentarmos, nem o facto de ele ser sempre uma criatura sorridente, demovia o Max dessa antipatia clássica entre carteiro e cão.

Max: Todas as pessoas se interrogam porque razão nós, cães, temos um ódio de estimação pelos carteiros… bem, a mim parece-me óbvio! Nós somos educados para proteger a casa dos nossos donos; Somos incentivados a gostar dos amigos e a repelir os desconhecidos que não são bem vindos. Então, porque razão deveríamos nós cumprimentar com entusiasmo aquela pessoa insistente que todos os santos dias aparece em casa do nosso dono e nunca nos é apresentado, nunca é convidado a entrar?





Margarida Neves
Benavente, 26 de Novembro de 2009-11-26

segunda-feira, novembro 23, 2009

Uma história de penas


A culpa é das galinhas



A prenda do pai

O pai esperava tudo daquele dia de Agosto. Nascido sob o signo do leão, era positivo e sensato, sem nunca se deixar levar pelos delírios do optimismo. Esperava um dia de sol, uma ida à praia, uma boa refeição, talvez uma prenda, até. Faço hoje 28 anos…- pensou - mereço uma prenda!
E a minha mãe, deu-lhe uma bela prenda! Um emergente rolinho de carnes rosadas, que mal se viu fora do ventre materno, largou num berreiro sem fim. Uma prenda e tanto.
Uma filha, como prenda do seu vigésimo oitavo aniversário.
Ainda hoje o deverá pensar – que bela prenda esta me saiu…

esta sou eu

Numa arrumação do sótão dos meus pais, há pouco tempo, encontrei um misterioso papel: a factura comprovativa da compra feita naquele dia de Agosto. Passada pela secretaria da Maternidade de Coimbra, cobrava aos meus pais 400$00. É esse o meu valor – uns enigmáticos 400$00.
O meu irmão mais velho, cuja condição de primogénito bem tentei, sem sucesso, trocar por um prato de lentilhas, teve, nos idos de 1968, a honra suprema de ser conduzido da maternidade a casa num táxi. Um símbolo profético da sua elevada nobreza de espírito.
Eu, no entanto, tive direito a um transporte intrigante. Uma vizinha emprestou ao meu pai uma camioneta e ele, encartado no ultramar, em Moçambique, onde aprendeu a conduzir pela esquerda, concedeu-me o supremo tratamento de me ir buscar pessoalmente e de me conduzir a mim e à minha mãe para casa. A minha mãe ressalta sempre o prestígio que é ser-se conduzida pelo pai… eu tenho as minhas dúvidas.
Não que eu não confie no meu pai, claro que sim, mas a tal camioneta era usada no transporte de galinhas… A minha primeira viagem foi povoada por uma nuvem de penas! Profético, também.
As penas entraram-me na alma e ainda hoje, comparando-me com a nobreza edificante do meu irmão, sigo a minha vida imersa numa colorida e cacarejante personalidade.


Margarida Neves
Benavente, Abril 2009

Uma história de idades


“Que idade me dás?”




Se há resposta que me irrita é aquela que tanta gente dá, quando lhes perguntamos a idade. Nem sequer é bem uma resposta, é antes uma contra-pergunta.
- Que idade tens?
E logo essa irritante contra-pergunta:
- Que idade me dás? (grrrrrrrrrrrrrr)
Irrita-me por três motivos: um de ordem pragmática, outro de ordem linguística e ainda outro de ordem existencial.
Em termos pragmáticos porque uma pergunta pressupõe uma resposta, a menos que seja uma pergunta retórica. A pergunta representa o início de um ciclo que será fechado pela resposta (até em termos melódicos). Se em vez de uma resposta surge uma contra-pergunta, o ciclo não se fecha, antes pelo contrário inicia-se outro ciclo.
Em termos linguísticos é uma dinâmica contra natura: o homem planta, a terra dá - não é o homem que dá; O homem tem sede, bebe água – não é a sede que bebe água. Esta falta de lógica na construção de um ciclo pergunta – resposta só pode ser banida se o emissor for como eu e finte o processo:
- Que idade tens?
- Que idade me dás?
- Que idade achas que eu penso que tu tens?
Hehehehehehehehehehehe…..

Finalmente, em termos linguísticos, sabemos que neste mundo consumista ninguém dá nada a ninguém. Como diz – e bem – o David Lodge, “There are no free lunchs”. Ninguém dá valores a ninguém, muito menos uma coisa tão abstracta como idade. Quando muito ficciona-se uma idade mais agradável, em troca da simpatia do interlocutor. Além disso, a pessoa já carrega nos ombros a sua idade, porque razão lhe hei-de dar mais ainda?
Para além disso, há ainda outra questão que me irrita tanto ou mais que a tal contra-pergunta: porque razão as pessoas de menos de vinte anos querem parecer ter mais idade e as pessoas de mais de trinta anos querem parecer ter menos? As pessoas terão perdido o juízo? Não se lembram que tudo tem o seu tempo, que não vale a pena querer acelerar ou retardar a passagem do tempo, de forma irresponsável ou patética?
E que parvoíce é essa de querer aos catorze anos fumar ou ter relações sexuais para parecer mais velho ou aos sessenta fazer plásticas dispendiosas e dolorosas para parecer mais novo? É uma atitude parva, que não disfarça nada e apenas fragiliza a imagem de quem entra nesse processo de aceleração ou retardamento.
Aos catorze anos precisa-se de saúde, de ar puro e não de empestar os pulmões em crescimento com o fumo dos cigarros.
Aos sessenta temos vivências do nosso caminhar, temos um património de experiências e memórias. Apagar as rugas é como anular esse património. Qualquer uma dessas atitudes é idiota. No fundo, resume-se a isso: uma atitude idiota.
Tenho duas propostas para combater a irritante contra-pergunta - Que idade me dás?:
- Que idade tens?
- Que idade me dás?
- Eu não dou, vendo! Se pagares bem, ponho-te no infantário; se fores sovina, ponho-te no lar de idosos.

Ou então:
-Que idade tens?
- Que idade me dás?
- Depende, se tiveres menos de vinte dou-te mais cinco; se tiveres mais de trinta, dou-te menos dez.

“O tempo pergunta ao tempo o tempo que o tempo tem. E o tempo responde ao tempo que o tempo tem o tempo que o tempo tem.”

Tenho a idade que tenho, a que figura no meu cartão de identidade. Carrego com orgulho o meu património de memórias. Dou-vos a idade que vocês têm e peço-vos que se orgulhem dela, não a escondam, nem a neguem.
A nossa idade é o conjunto de pegadas que deixamos para trás no caminho que já percorremos. A nossa vivência, as recordações, a experiência são o rasto que deixamos no trilho que Deus nos deu para percorrermos.


Margarida Neves
Praia de Mira, 22-11-2009