segunda-feira, agosto 23, 2010


Compulsivo


Ao meu pai, obviamente...


O meu pai é um leitor daqueles que ninguém precisa de iniciar ou incentivar à leitura. É um leitor compulsivo: se encontra um jornal no chão, senta-se e lê-o. Se vai à casa de banho, lê as bulas dos medicamentos e depois, se o tempo lhe sobra, as indicações do rótulos dos produtos de higiene... adoramos rótulos, por um motivo de laços de sangue.
Não sei se herdei essa mania da leitura dele, assim como herdei a data do aniversário, os gestos, o moreno, a personalidade viva e espirituosa e a doença de pele. Não sei se foi pelos genes ou se é uma mania que surgiu espontânea, mas nasci assim: leitora apaixonada, compulsiva em absoluto.
Como já disse, gastamos o tempo morto passado na casa de banho a ler bulas e rótulos. O meu irmão Sérgio trabalha numa firma que produz SORBITOL, um inerte feito à base de trigo hidraulizado. Uma das nossas ocupações na casa de banho, que levamos a peito como se de uma competição entre pai e filha se tratasse, é descobrir sorbitol nos ingredientes dos shampoos, gel de banho, pasta dentífrica, creme de barbear, etc. Procurem em vossa casa, é divertidíssimo!
Como diz o meu Gabriel, cada vez que nos alindamos na casa de banho, estamos a contribuir para a saúde financeira da empresa e para a decorrente subsistência do meu irmão e sua prole de três sobrinhos nossos, esposa francesa e gata Ninjah.
Um dia, o meu pai foi aos Hospitais da Universidade de Coimbra com a minha mãe, porque ela tinha uma consulta. Como ele não arranjou estacionamento para o nosso Fiesta, deixou-se ficar no carro, enquanto a minha mãe foi à consulta. Quando digo “nosso” Fiesta, não o digo inocentemente. Na verdade, o carro é meu (em terceiras núpcias...): foi comprado em 1993 para o meu irmão, quando ele começou a trabalhar. Depois ele vendeu-o aos meus pais e, em 1998 eu comprei-o aos meus pais. É um carro que está em nome da Empresa da minha mãe, é cuidado e acarinhado pelo pai, conduzido por todos e as despesas de combustível e seguro tem sido até agora de quem o conduz na altura. Assim sendo, o Ford Fiesta BE é o verdadeiro carro comunitário.
Mas, dizia, o meu pai ficou no carro e... ohhh tragédia!... não tinha nada para ler! Revistou o porta-luvas e descobriu um folheto informativo de um palácio visitado pelo meu irmão e a namorada, hoje esposa. Era um folheto em várias línguas, sendo a mais próxima do nós o espanhol. O meu pai, qual Varatojo, estudou afincadamente os vários textos e apreendeu o significado em espanhol. Depois leu em alemão, já que 9 anos de vida na Alemanha lhe dá esse traquejo. Passou ao francês, valendo-se das procimidades que a raíz comum traz e, finalmente (vejam a quem eu fui buscar os delírios incríveis!) foi analisar os textinhos em... japonês!
Depois de proficuamente analisado, constatou que em cada frase havia um caracter comum e foi ver na versão em alemão que palavra surgia em todas as frases. Era CASTELO. Aparecia sensivelmente nos mesmos sítios, o mesmo número de vezes e pela mesma ordem do que o tal caracter na versão
japonesa. Ficou então a saber que aquele símbolo exótico, que mais parecia o pi com mais uns rabiscos, significava “castelo”!
É assim o meu pai, que eu amo, admiro e copio.
Leitor ab imo, até de japonês, Santo Deus! O céu é o limite, não é, pai?
Um homem inteligente, curioso e, acima de tudo, sempre surpreendente. Tenho muito orgulho em ter nascido dele, somos parecidos, também eu sou toda direccionada para as letras, a língua, literatura, linguística escrita e leitura sempre e constante.
Herdei do meu pai virtudes e defeitos, discurso e gestos, Tenho muito orgulho em ter nascido dele, no mesmo dia em que ele completava 28 anos de idade. Não é só o meu pai, é meu co-aniversariante também. Nesse dia, sob o signo do Leão, 50% do nosso núcleo familiar faz anos.
O meu pai é um homem extraordinário, daqueles que, a não existirem, teriam de ser inventados.



Margarida Neves
Odeceixe, 23 de Agosto de 2010

quarta-feira, julho 14, 2010

Uma história de música

Musicampina



Ao meu Gabriel e à amorosa mãe dele, Georgina.



Gosto de música e de tudo o que tem a ver com língua. Gosto, acima de tudo, do exercício aliciante, e no entanto despretencioso, de conciliar as minhas duas paixões.
Quando troquei a minha Beira Litoral pelo Ribatejo, uma das coisas que mais me encantou foi a musicalidade do linguajar destas gentes campinas. Os Ribatejanos, que não devem o seu nome ao facto, errado, de viverem acima do Tejo, mas sim ao facto de serem habitantes da sua margem - os Ribatejanos, dizia eu, falam a cantar. É um canto doce, sincopado e divertido, uma tranposição exacta do fandango para a esfera do falar. É uma melodia bem diferente da que se ouve para além do Tejo, lá mais a Sul. Essa é arrastada, mais triste e árida. Pensemos nas paisagens verdejantes dos campinos e nas planícies amarelas de secura dos Alentejanos. A melodia do falar alentejano é arrastada, de ritmo mais lento, embora igualmente melodiosa, igualmente linda, na sua tristeza telúrica.
Os Ribatejanos são o povo mais engraçado, frenético e castiço que conheço. São geniais nas respostas prontas e espirituosas, nos trocadilhos linguísticos, na capacidade assombrosa de baptizar os amigos com alcunhas que não lembravam a ninguém de outras latitudes. É quase uma questão de honra não deixar o interlocutor sem resposta, num bailado linguístico de cantadas à desgarrada. Nos finais de dia, à volta da merecida cerveja, ouvem-se gargalhadas e ditos divertidos, que são um encanto para os meus ouvidos forasteiros. Digo merecida cerveja, pois sei que é o descanso de um dia de trabalho, mas usar o singular quando me refiro à cerveja é um acto meu de cortesia. São sempre múltiplas e, reconheço, merecidas, sim. Até porque o alcool potencia a diversão, o cantar, a desgarrada no linguajar.
Falo dos Ribatejanos com amor, pois Ribatejano é o meu. Toda a família dele, que eu amo, porque é já a minha, me adoptou sem reservas. São pessoas fantásticas, de ideias claras, ditos certeiros, palavras cantadas e frases melodiosas, que fazem a minha delícia nas nossas permanetes reuniões familiares no monte da nossa avó.
Dizem os meus conterrâneos que até eu, nestes quatro anos, já adquiri um pouco dessa música no meu falar, o que me enche de vaidade e orgulho.

Passemos a um exemplo prático. Imagine-se uma situação, passada na minha terra, a Vila de Mira, Distrito de Coimbra. Uma pessoa diz algo e o interlocutor não percebe. Não quero dizer que não perceba o significado, a mensagem. Trata-se de não entender as palavras pronunciadas, de não captar a mensagem na sua vertente acústica. A reacção será algo como:
- “Ah?”
ou
- "O quê?"
ou então
- "Não percebi, podes repetir?"
Aqui, não. Aqui, na minha terra de adopção, é música pura. É um

- "Éh o quêeee?... "

… numa curva melódica que me encanta e que transmite um misto da confusão de quem não entende e da impaciência de quem quer entender. Faz lembrar o início de um canto polifónico, na sua musicalidade, tão inesperada para mim.
É uma maravilha, uma delícia para os meus ouvidos.

Vou-vos aqui fazer uma confidência, mas não divulguem, por favor.
Por vezes pronuncio propositadamente mal uma qualquer frase, apenas para ter o prazer de ouvir esta pergunta cantada.
Os meus Ribatejanos que me perdoem... são fraquezas de quem os adora, de quem adora ouvir a música do seu falar.



Benavente / Coruche, 14 de Julho de 2010
Margarida Neves

quarta-feira, abril 21, 2010

Uma história de comidas


Ratos

Tinhamos seis, sete e oito anos e éramos terríveis. Uma menina, eu, a mais nova, e três rapazes, o meu irmão era o mais velho. Não bastasse sermos quatro miúdos cheios de vida, sempre a arranjar problemas, sempre travessos, ainda tinhamos o patrocínio entusiasmado de um tio padre, estudante em Itália, que nos visitava muito na Alemanha.
O decoro não me permite revelar o seu nome, pois é um hoje o respeitável bispo de uma das nossas dioceses. Mas na altura era apenas um jovem padre, nosso companheiro de brincadeiras, um homem bem-disposto e desmiolado q.b.
Quando a vizinha de cima, uma velhota azeda se queixava do barulho que os índios portugueses faziam e dava umas sapatadas de protesto no chão da casa dela, que era o nosso tecto, o nosso tio ensinava-nos, com fervor pedagógico, a subir para cima de cadeiras, de vassoura na mão e...a estabelecer contacto morse com a vizinha. Nem sei como ela não mudou de casa.
Como é habitual entre compatriotas que vivem num país estrangeiro, reuniamo-nos sempre com outras famílias portuguesas. Como é habitual entre portugueses, o engodo era sempre o convívio ...à volta da mesa.
Naquele Domingo de Primavera, éramos cinco miúdos, todos com idades compreendidas entre os seis e os oito anos. O 5º elemento era filho do casal convidado, que contribuia para o convívio com a mão-de-obra na cozinha. Tinhamos ido ao mercado de Enchede, na Holanda e feitas as compras, os convidados ofereciam-se então para serem os cozinheiros.
No jardim, o futuro bispo entregava-se à edificante tarefa de ensinar as tropas a marchar, de vassoura ao ombro.
um dois um dois Alto
em Sentido
descansar
à vontade
um dois um dois

Nas suas palavras, a tropa precisava de “Xeplina” e era isso, disciplina que aquele religioso alucinado nos incutia. Aprendemos com ele a arte da diversão, o sabor apimentado da pequena transgressão. Este santo homem deve ser o melhor dos confessores – nada o deverá surpreender a ele, mestre das travessuras.
Naquele Domingo, enquanto marchávamos às ordens do nosso comandante, os dois convidados empenhavam-se na arte de criar o nosso almoço. Tinham um pouco a mania das modernices, queriam surpreender. E não é difícil surpreender malta que não tem imaginação nenhuma para se alimentar: batatas, batatas, batatas, arroz, massa, carne, peixe e basta – um enfado.
Da cozinha vinha um cheiro estranho, nem bom nem mau, estranho, apenas diferente. Depois de tanto marchar, pôr vassouras ao ombro, fazer continências ao comandante e ficar à vontade, as tropas entregaram as espingardas ao comandante que as foi guardar no barracão das vassouras. Como a fome começava a apertar, o nosso comandante decidiu, então, iniciar-nos na arte da espionagem militar, a ver se descobríamos o que ia ser o almoço.
Escolheu, para essa operação, o elemento mais capaz de levar a cabo o exercício de espionagem com eficácia e competência. Escolheu o elemento mais sensato, mais discreto, mais subtil, a única mulher. Escolheu-me a mim.
Vesti um camuflado, pus uma panela capacete , cheia de folhas e ramos de arbusto na cabeça e entrei em casa, colada às paredes. Os adultos que me viram, não me ligaram nenhuma. Sempre me conheceram assim. Aprendi a ler aos 4 anos, quando o meu pai ajudava o meu irmão nos trabalhos de casa e comecei logo a ler histórias. Com seis anos já lia com fluência e vivia mais dentro dos livros do que na vida real. Fui habituando toda a gente a um comportamento excêntrico – andar de panela cheia de ramos na cabeça era apenas mais um deles. Não era mais inesperado do que tantas outras coisas estranhas que eu fazia.
Fui-me aproximando do centro de actividades culinárias, o meu alvo de espionagem: a cozinha.
O cheiro era cada vez mais forte, mais bizarro.
Espreitei. Por entre a movimentação que se passava na cozinha, consegui ver um tabuleiro onde estava aquilo que íamos comer.
Um nojo.
Cheia de vómitos, corri para o quintal e, mais uma vez, os adultos da sala ignoraram-me.
Reuni as tropas.
- Não digam nada aos nossos pais – avisei-os – mas eles vão comer ratos no forno!
- RATOS? - até o padre se horrorizou.
Vencida, deixei-me caír na relva. Tirei a panela da cabeça e tentei acalmar-me – Ratos, sim... ratos.

Ninguém de nós cinco almoçou. Não conseguíamos sequer olhar para a travessa onde os infelizes roedores estavam dispostos, com palitos a trespassarem-lhes os ventres inchados.

O único que teve coragem para se servir foi o nosso comandante, homem de grande treino militar, habituado ao estoicismo de guerras.


- Parabéns, cunhado! - dizia ele, o jovem padre, o futuro bispo, enquanto levava um bocado de rato à boca – as tuas lulas recheadas estão uma delícia!



Ramalheiro, 16 de Abril de 2010
Margarida Neves

quarta-feira, abril 14, 2010

Uma história de visão














Flor discreta


Tinham floristas frente a frente, na mesma avenida, onde eu passo todos os dias. Mudo de passeio para passar em frente à da Flor, porque, decididamente, não gosto da Maria, chamemos-lhe assim.
Um caso de teimosia determinara que as lojas estivessem ali, provocadoramewnte frente uma à outra.
Uma das florista, a Maria, num gesto mesquinho e desleal, deu ordem de despejo à Flor, para assumir ela própria o negócio. É uma mulherzinha vil.
A outra, a minha Flor, inteligente e superior a estas mesquinhices, abriu serenamente o seu novo negócio. Frente à outra claro – um delicioso piscar de olho a quem intuiu a contenda. Porque a Flor é uma hino à discrição.Com um sorriso travesso e uma simpatia que temos de saber conquistar, contou-me que a sua loja, a sua florista, florescia.
Loja de longa tradição na venda de plantas e flores, a mais antiga fora da senhoria, a tal Maria vil, fora depois alugada à Flor e fora, finalmente cobiçada pela ganância maldosa da senhoria.
Daí o conflito, ganho com elegância e discrição por quem soube ser superior. Sem modéstias, fujo da mulherzinha e quero a Flor para amiga.

Esta história é minha, porque a escrevo, mas dela porque me inspirou.
E porque gosto tanto dela, claro.
Como ela mesma diz, uma pessoa que gosta de cães e de flores, só pode ser boa pessoa, das que valem a pena. E a minha Flor vale a pena. Gosto de pessoas assim, bonitas tranquilas, reservadas, discretas. - nem do conflito com a senhoria ela me falou, está tão acima desses enredos, esta rapariga! No entanto, eu entendi as linhas gerais da contenda com a senhoria. Entendi a história passada, num simples olhar de tristeza, ressentimento e orgulho. Orgulho por ter conseguido superar o mau tempo e estar agora a brilhar ao sol.

A palavra-chave desta história é discrição. As ideias para escrever surgem-me de factos do quotidinao que eu observo, ouço ou intuo, apartir de um olhar expressivo e de palavras caladas.São ideias que depois começo a trabalhar no meu espírito, que amadurecem e surgem no papel.

Num Domingo fui comprar margaridas, as minhas flores de eleição, amarelas, a minha cor de eleição. Fui à loja da Flor, como sempre faço. Ela estava a compor um ramo de rosas de paixão, belíssimas, uma homenagem morna a um amor quente.
Comparado com as minhas singelas margaridas, aquele ramo segredava uma paixão arrebatadora, revelava o fogo de um amor, recente, ou imortal.
Caramba – pensei - feliz da mulher que recebe um ramo assim do seu marido...
E logo o diabinho que mora dentro da minha cabeça e é sempre mais astuto do que o seu ingénuo vizinho anjinho, segredou-me, cheio de malícia: E sabes lá se é para a mulher dele?

Embatuquei.

Olhei para o homem, um quarentão charmoso, o tipo de homem que é uma tentação para qualquer mulher. Cheirava discretamente a um perfume caro, estava vestido com elegância, parecia pessoa sabida, era definitivamente do tipo malandro, daqueles que enlouquecem as mulheres. Daqueles que, com um olhar, roubam qualquer mulher aventureira ao bom rapaz que tem em casa. Olhei-o nos olhos, curiosa e logo desviei o olhar, rendida. Meu deus... olhos azuis...pele morena, cabelo grisalho, voz sensual, movimentos de felino, sedutor. Um homem que espera a presa que quer ser sua.
Uma perdição, definitivamente.
Pode ser que não, que as rosas sejam para a mulher... - o ajinho já só se atrevia a falar num fio de voz.
E eu sou o coelhinho da Páscoa – gozou o diabinho.
Segui a minha intuição, tomei o partido do diabinho.
Tinha ali um belíssimo exemplar de um malandro. E que malandro! Do melhor!...

Peguei nas minhas margaridas e saí. Ainda o ouvi pedir à Flor um discreto e sigiloso envelopezinho.
O anjinho calou-se, claro.
O diabinho sorriu
… e eu comecei a construir esta história.

Nos tempos idos, em que havia só uma florista na avenida e era a a mulherzinha a encarregada do negócio, houve problemas graves que alimentaram os cochichos da terra durante meses. Calhandrices, basicamente. Dona de uma lingua afiada e viperina e dotada de pouca inteligência, a florista, a Maria, tinha tido muito pouca visão.Tinha-se esquecido que o segredo acalenta o negócio. Tinha ignorado conselhos sensatos de quem antevia os problemas a haver. Fazia ramos vistosos, honra lhe seja feita, é uma Maria talentosa na arte de fazer poemas com flores.
No entanto, nunca soube guardar para si as histórias de amor e desamor que aqueles ramos segredavam. Nas fugas da vida cinzenta, em busca de ar, de liberdade, de cor, muitos homens, muitas mulheres perdiam-se em braços alheios. E, deslumbrados pelo fogo da novidade, buscavam na linguagem das flores as mensagens que calavam.
Deviam ser, obviamente, ramos discretos, quardados no segredo de quem os fazia, quem os oferecia, quem os recebia.Devia ser um triângulo de três vértices de silêncio. Mas vá-se lá pedir silêncio aoi vertice da Maria florista!
Falou, insinuou, especulou, sempre gulosa de escândalo, sempre vaidosa de ter novidades apetitosas para partilhar em segredo com quem a quisesse ouvir.

Ora, a melhor maneira de espalhar uma novidade, é, obviamente, contá-la em segredo e pedir que não se conte a ninguém...

As notícias já corriam de boca em boca , ante sorrizinhos alarves e palavras murmuradas, cheias de maladade. Durante um longo tempo, a terrinha fervilhou com aquele petisco que Maria florista distribuía generosamente. Em segredo...
Não teve visão, não soube cuidar do ouro, matou a galinha. Teve de alugar a loja à Flor. Antes até de se fornecer de plantas e flores, esta rapariga prática e e lúcida, sensata como só os mais velhos costumam ser, esta rapariga, dizia eu, encomendou um fornecimento de cartões bonitos e de envelopes pequenos, em várias cores. Instalou uma pequena bancada, o nicho do amor, chamava-lhe em pensamento. Fazia os ramos em silêncio, com o bom gosto de quem sabe entrançar flores, com a serenidade de quem se abstém de conhecer pormenores que só aos amantes dizem respeito.
A loja recuperou a saúde, as flores murmuravam palavras de amor, acobertadas pelo segredo do pequeno envelope.
Maria, a vil, não suportou o êxito alheio e retomou o seu lugar, expulsando a Flor. Reabriu de novo a sua antiga florista, gulosa da clientela recuperada.

O que ela não esperava era que a Flor abrisse uma concorrente mesmo em frente.
O que ela não suspeitava era que que a clientela apreciasse a discrição, a serenidade, o desprendimento daquela rapariga, tão cheia de juízo, de tacto para um negócio delicado como poucos.

Ainda hoje a s flores da loja dela são as mais bonitas, mais perfumadas.
São flores que brilham porque calam o amor.

São flores que têm o perfume da discrição.



Benavente, 14 de Abril de 2010
Margarida Neves

segunda-feira, abril 12, 2010

Uma história de gostar e ser gostada





O Sorriso


Ela chama-se B.
Agora chamo-lhe amiga, mas durante algum tempo, o tempo de acostagem à praia dela, chamei-lhe tentação. Foi o sorriso luminoso dela que me atraíu.

Creio que foi o sorriso
O sorriso foi quem abriu a porta
Era um sorriso com muita luz
Lá dentro, apetecia entrar nele
Tirar a roupa, ficar nu
Dentro daquele sorriso


Eugénio de Andrade


Quis que ela gostasse de mim, que se deixasse gostar. E chamo-lhe amiga, porque consegui.

O processo-conquista foi rápido e eficaz. Não o revelo, porque não apregoo os meus métodos, sob pena de os ver perderem eficácia com novas tentações.

Ela traz boa fortuna – faz-me bem. É como um doce que nos acaricia a alma e sopra as nuvens para longe. Ela faz bem a quem tem a sorte de a conhecer. Em busca de não sabe bem o quê, percorre a vida com os olhos cheios de luz. Ama os pequeninos, as plantas, os bichos... é toda ela um hino à vida, à alegria. Em dia de sol ri-se, porque faz sol. Em dias de chuva ri-se porque vai fazer sol. E é assim em tudo na vida, uma optimista.

Nas palavras inspiradas de Sérgio Godinho, ela é um sopro no coração...
Eu procurava uma amiga assim: alguém com quem pudesse partilhar
pensamentos
sentimentos
méritos
culpas

Alguém que me ouvisse em sintonia
Alguém que me compreendesse, que não me julgasse, que aceitasse a minha estranha e original forma de ser, vida que levo, tipo safari dos sentidos, cheia de mistério e exotismo.

Encontrei-a, conquistei-a - com a sua preciosa cooperação - ela que logo se deixou tomar de assalto.

Talvez me procurasse também?

Agora vou guardá-la, como quem guarda um tesouro muito seu.
Já o Alexandre O'Neill dizia Amigo vai ser é já uma grande festa!
Os poetas dizem tudo: Vê-la é uma festa! Um dos momentos mais luminosos do meu dia.

Obrigada, B. por te teres deixado invadir.


Margarida Neves
Benavente, 12 de Abril de 2010

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Uma história de solidão





O peso da Solidão





Bruto mais bruto não havia. Comunicava por monossílabos, cuspia no chão, mastigava de boca aberta, cheirava a texugo.
O seu corpo parecia uma filarmónica, de tantos ruídos suspeitos que emitia. Olhava fixamente as pessoas, num exercício lamentável de falta de educação, o que constrangia toda a gente. O rosto vermelho e os olhinhos de suíno espelhavam uma tacanhez dolorosa.
Os poucos amigos que tinha eram como ele – formavam uma manada de selvagens, de quem toda a gente fugia. As mulheres pensavam, horrorizadas, que nunca aceitariam homens daqueles para maridos, nem que eles fossem os últimos exemplares da espécie. Os homens encolhiam-se de medo, dispostos a mandar as filhas para o convento, antes que elas aparecessem em casa com um candidato a genro daquela estirpe.
Os seus dias passava-os a conduzir pela Europa. O braço decorado com tatuagens horrendas apoiado na janela do seu camião. Comia onde calhava, dormia no beliche atrás do banco do seu amigo e consolava-se, por vezes, nos braços de mulheres de aluguer.
Grunhia três palavras em francês e outras tantas em Alemão e bastavam-lhe. O resto era comunicado por gestos e entendido pela intuição.
E no entanto, contra todas as probabilidades, era uma alma sensível, carente de amor e de companhia. A mulher tinha-o deixado, após mais uma tareia nascida de um ataque de fúria animal. Levara com ela os dois filhos que ele amava tanto, mas que agora só via ocasionalmente. Eram encontros tensos, aqueles dois miúdos ainda tão cheios de medo do pai, tão envenenados pela mãe e com os gritos tão frescos na memória. Os gritos e as passagens pelo hospital, onde a mãe explicava que tinha caído das escadas, ou batido contra uma porta.
E no entanto os miúdos viam no olhar do pai um brilho de arrependimento e o seu medo ia-se desvanecendo. Agora eram maiores, já não se deixavam influenciar pela mãe e começavam a esquecer os traumas das suas infâncias perdidas.
Solidão – palavra tão grande e tão pesada que não lhe cabia no camião.
Um dia viu-o numa loja e adoptou imediatamente aquele amigo. Convidou-o para seu companheiro de viagem e, sem esperar resposta, sentou-o no banco do passageiro e colocou-lhe o cinto de segurança. Contente, passou a mão pelo seu focinho tão macio.
-Vou chamar-te Tomé – disse-lhe. E partiram estrada fora.
Nunca mais se separou daquele peluche descomunal.


Margarida Neves
Benavente 25 de Fevereiro 2010

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Uma história de uma civilização superior


Avatar



Para ti…

Não, não fui ver, nem pretendo ir. – disse eu a uma amiga que me falava do filme, embalada em deslumbramento – Não gosto desse género de filmes do tipo imaginário, cheio de criaturinhas inverosímeis.
Disse-me que fosse, que me deixasse surpreender, fascinar.

Fiquei curiosa.

Fui…

Agora sou eu a deslumbrada.
Avatar é um filme de uma beleza esmagadora. Traz consigo uma mensagem tão grande e verdadeira, quanto simples e cândida.
Pelo nosso enquadramento civilizacional, parece haver um confronto entre uma sociedade hiper-desenvolvida e outra absolutamente primitiva, rudimentar.
No entanto, o que acontece connosco, espectadores, é uma espécie de processo “vice-versa”. Afinal, qual é a sociedade primitiva? A nossa, tecnológica e materialista ou a deles, o povo Na'vi, que vive em perfeita harmonia com a mãe natureza?
Pelo meio ainda uma história de amor no mais clássico e tradicional esquema boy meets girl: Jake Sully e Neytiri provam-nos que o amor tudo pode.
Por amor muda-se de vida, de credo, de terra. Por amor, afinal, muda-se até de forma, de tamanho, de cor, de planeta.
Avatar é um filme ambicioso do ponto de vista técnico e tão simples na sua mensagem certeira. Fascina, apaixona e faz reflectir.
Assim como um dos filmes da minha vida, Pulp fiction, de Tarantino, faz-nos sair do cinema com a tarefa de realizar o trabalho de casa: em Pulp fiction a tarefa é montar o puzzle da narrativa. Em Avatar é a obrigação de meditar na mensagem, aferir a moral, questionar o que nos é essencial: a ganância que destrói o mundo, ou a harmonia com a natureza que nos completa.




Margarida Neves
Benavente, Fevereiro de 2010