quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Uma história de solidão





O peso da Solidão





Bruto mais bruto não havia. Comunicava por monossílabos, cuspia no chão, mastigava de boca aberta, cheirava a texugo.
O seu corpo parecia uma filarmónica, de tantos ruídos suspeitos que emitia. Olhava fixamente as pessoas, num exercício lamentável de falta de educação, o que constrangia toda a gente. O rosto vermelho e os olhinhos de suíno espelhavam uma tacanhez dolorosa.
Os poucos amigos que tinha eram como ele – formavam uma manada de selvagens, de quem toda a gente fugia. As mulheres pensavam, horrorizadas, que nunca aceitariam homens daqueles para maridos, nem que eles fossem os últimos exemplares da espécie. Os homens encolhiam-se de medo, dispostos a mandar as filhas para o convento, antes que elas aparecessem em casa com um candidato a genro daquela estirpe.
Os seus dias passava-os a conduzir pela Europa. O braço decorado com tatuagens horrendas apoiado na janela do seu camião. Comia onde calhava, dormia no beliche atrás do banco do seu amigo e consolava-se, por vezes, nos braços de mulheres de aluguer.
Grunhia três palavras em francês e outras tantas em Alemão e bastavam-lhe. O resto era comunicado por gestos e entendido pela intuição.
E no entanto, contra todas as probabilidades, era uma alma sensível, carente de amor e de companhia. A mulher tinha-o deixado, após mais uma tareia nascida de um ataque de fúria animal. Levara com ela os dois filhos que ele amava tanto, mas que agora só via ocasionalmente. Eram encontros tensos, aqueles dois miúdos ainda tão cheios de medo do pai, tão envenenados pela mãe e com os gritos tão frescos na memória. Os gritos e as passagens pelo hospital, onde a mãe explicava que tinha caído das escadas, ou batido contra uma porta.
E no entanto os miúdos viam no olhar do pai um brilho de arrependimento e o seu medo ia-se desvanecendo. Agora eram maiores, já não se deixavam influenciar pela mãe e começavam a esquecer os traumas das suas infâncias perdidas.
Solidão – palavra tão grande e tão pesada que não lhe cabia no camião.
Um dia viu-o numa loja e adoptou imediatamente aquele amigo. Convidou-o para seu companheiro de viagem e, sem esperar resposta, sentou-o no banco do passageiro e colocou-lhe o cinto de segurança. Contente, passou a mão pelo seu focinho tão macio.
-Vou chamar-te Tomé – disse-lhe. E partiram estrada fora.
Nunca mais se separou daquele peluche descomunal.


Margarida Neves
Benavente 25 de Fevereiro 2010

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Uma história de uma civilização superior


Avatar



Para ti…

Não, não fui ver, nem pretendo ir. – disse eu a uma amiga que me falava do filme, embalada em deslumbramento – Não gosto desse género de filmes do tipo imaginário, cheio de criaturinhas inverosímeis.
Disse-me que fosse, que me deixasse surpreender, fascinar.

Fiquei curiosa.

Fui…

Agora sou eu a deslumbrada.
Avatar é um filme de uma beleza esmagadora. Traz consigo uma mensagem tão grande e verdadeira, quanto simples e cândida.
Pelo nosso enquadramento civilizacional, parece haver um confronto entre uma sociedade hiper-desenvolvida e outra absolutamente primitiva, rudimentar.
No entanto, o que acontece connosco, espectadores, é uma espécie de processo “vice-versa”. Afinal, qual é a sociedade primitiva? A nossa, tecnológica e materialista ou a deles, o povo Na'vi, que vive em perfeita harmonia com a mãe natureza?
Pelo meio ainda uma história de amor no mais clássico e tradicional esquema boy meets girl: Jake Sully e Neytiri provam-nos que o amor tudo pode.
Por amor muda-se de vida, de credo, de terra. Por amor, afinal, muda-se até de forma, de tamanho, de cor, de planeta.
Avatar é um filme ambicioso do ponto de vista técnico e tão simples na sua mensagem certeira. Fascina, apaixona e faz reflectir.
Assim como um dos filmes da minha vida, Pulp fiction, de Tarantino, faz-nos sair do cinema com a tarefa de realizar o trabalho de casa: em Pulp fiction a tarefa é montar o puzzle da narrativa. Em Avatar é a obrigação de meditar na mensagem, aferir a moral, questionar o que nos é essencial: a ganância que destrói o mundo, ou a harmonia com a natureza que nos completa.




Margarida Neves
Benavente, Fevereiro de 2010