quarta-feira, julho 14, 2010

Uma história de música

Musicampina



Ao meu Gabriel e à amorosa mãe dele, Georgina.



Gosto de música e de tudo o que tem a ver com língua. Gosto, acima de tudo, do exercício aliciante, e no entanto despretencioso, de conciliar as minhas duas paixões.
Quando troquei a minha Beira Litoral pelo Ribatejo, uma das coisas que mais me encantou foi a musicalidade do linguajar destas gentes campinas. Os Ribatejanos, que não devem o seu nome ao facto, errado, de viverem acima do Tejo, mas sim ao facto de serem habitantes da sua margem - os Ribatejanos, dizia eu, falam a cantar. É um canto doce, sincopado e divertido, uma tranposição exacta do fandango para a esfera do falar. É uma melodia bem diferente da que se ouve para além do Tejo, lá mais a Sul. Essa é arrastada, mais triste e árida. Pensemos nas paisagens verdejantes dos campinos e nas planícies amarelas de secura dos Alentejanos. A melodia do falar alentejano é arrastada, de ritmo mais lento, embora igualmente melodiosa, igualmente linda, na sua tristeza telúrica.
Os Ribatejanos são o povo mais engraçado, frenético e castiço que conheço. São geniais nas respostas prontas e espirituosas, nos trocadilhos linguísticos, na capacidade assombrosa de baptizar os amigos com alcunhas que não lembravam a ninguém de outras latitudes. É quase uma questão de honra não deixar o interlocutor sem resposta, num bailado linguístico de cantadas à desgarrada. Nos finais de dia, à volta da merecida cerveja, ouvem-se gargalhadas e ditos divertidos, que são um encanto para os meus ouvidos forasteiros. Digo merecida cerveja, pois sei que é o descanso de um dia de trabalho, mas usar o singular quando me refiro à cerveja é um acto meu de cortesia. São sempre múltiplas e, reconheço, merecidas, sim. Até porque o alcool potencia a diversão, o cantar, a desgarrada no linguajar.
Falo dos Ribatejanos com amor, pois Ribatejano é o meu. Toda a família dele, que eu amo, porque é já a minha, me adoptou sem reservas. São pessoas fantásticas, de ideias claras, ditos certeiros, palavras cantadas e frases melodiosas, que fazem a minha delícia nas nossas permanetes reuniões familiares no monte da nossa avó.
Dizem os meus conterrâneos que até eu, nestes quatro anos, já adquiri um pouco dessa música no meu falar, o que me enche de vaidade e orgulho.

Passemos a um exemplo prático. Imagine-se uma situação, passada na minha terra, a Vila de Mira, Distrito de Coimbra. Uma pessoa diz algo e o interlocutor não percebe. Não quero dizer que não perceba o significado, a mensagem. Trata-se de não entender as palavras pronunciadas, de não captar a mensagem na sua vertente acústica. A reacção será algo como:
- “Ah?”
ou
- "O quê?"
ou então
- "Não percebi, podes repetir?"
Aqui, não. Aqui, na minha terra de adopção, é música pura. É um

- "Éh o quêeee?... "

… numa curva melódica que me encanta e que transmite um misto da confusão de quem não entende e da impaciência de quem quer entender. Faz lembrar o início de um canto polifónico, na sua musicalidade, tão inesperada para mim.
É uma maravilha, uma delícia para os meus ouvidos.

Vou-vos aqui fazer uma confidência, mas não divulguem, por favor.
Por vezes pronuncio propositadamente mal uma qualquer frase, apenas para ter o prazer de ouvir esta pergunta cantada.
Os meus Ribatejanos que me perdoem... são fraquezas de quem os adora, de quem adora ouvir a música do seu falar.



Benavente / Coruche, 14 de Julho de 2010
Margarida Neves