segunda-feira, agosto 23, 2010


Compulsivo


Ao meu pai, obviamente...


O meu pai é um leitor daqueles que ninguém precisa de iniciar ou incentivar à leitura. É um leitor compulsivo: se encontra um jornal no chão, senta-se e lê-o. Se vai à casa de banho, lê as bulas dos medicamentos e depois, se o tempo lhe sobra, as indicações do rótulos dos produtos de higiene... adoramos rótulos, por um motivo de laços de sangue.
Não sei se herdei essa mania da leitura dele, assim como herdei a data do aniversário, os gestos, o moreno, a personalidade viva e espirituosa e a doença de pele. Não sei se foi pelos genes ou se é uma mania que surgiu espontânea, mas nasci assim: leitora apaixonada, compulsiva em absoluto.
Como já disse, gastamos o tempo morto passado na casa de banho a ler bulas e rótulos. O meu irmão Sérgio trabalha numa firma que produz SORBITOL, um inerte feito à base de trigo hidraulizado. Uma das nossas ocupações na casa de banho, que levamos a peito como se de uma competição entre pai e filha se tratasse, é descobrir sorbitol nos ingredientes dos shampoos, gel de banho, pasta dentífrica, creme de barbear, etc. Procurem em vossa casa, é divertidíssimo!
Como diz o meu Gabriel, cada vez que nos alindamos na casa de banho, estamos a contribuir para a saúde financeira da empresa e para a decorrente subsistência do meu irmão e sua prole de três sobrinhos nossos, esposa francesa e gata Ninjah.
Um dia, o meu pai foi aos Hospitais da Universidade de Coimbra com a minha mãe, porque ela tinha uma consulta. Como ele não arranjou estacionamento para o nosso Fiesta, deixou-se ficar no carro, enquanto a minha mãe foi à consulta. Quando digo “nosso” Fiesta, não o digo inocentemente. Na verdade, o carro é meu (em terceiras núpcias...): foi comprado em 1993 para o meu irmão, quando ele começou a trabalhar. Depois ele vendeu-o aos meus pais e, em 1998 eu comprei-o aos meus pais. É um carro que está em nome da Empresa da minha mãe, é cuidado e acarinhado pelo pai, conduzido por todos e as despesas de combustível e seguro tem sido até agora de quem o conduz na altura. Assim sendo, o Ford Fiesta BE é o verdadeiro carro comunitário.
Mas, dizia, o meu pai ficou no carro e... ohhh tragédia!... não tinha nada para ler! Revistou o porta-luvas e descobriu um folheto informativo de um palácio visitado pelo meu irmão e a namorada, hoje esposa. Era um folheto em várias línguas, sendo a mais próxima do nós o espanhol. O meu pai, qual Varatojo, estudou afincadamente os vários textos e apreendeu o significado em espanhol. Depois leu em alemão, já que 9 anos de vida na Alemanha lhe dá esse traquejo. Passou ao francês, valendo-se das procimidades que a raíz comum traz e, finalmente (vejam a quem eu fui buscar os delírios incríveis!) foi analisar os textinhos em... japonês!
Depois de proficuamente analisado, constatou que em cada frase havia um caracter comum e foi ver na versão em alemão que palavra surgia em todas as frases. Era CASTELO. Aparecia sensivelmente nos mesmos sítios, o mesmo número de vezes e pela mesma ordem do que o tal caracter na versão
japonesa. Ficou então a saber que aquele símbolo exótico, que mais parecia o pi com mais uns rabiscos, significava “castelo”!
É assim o meu pai, que eu amo, admiro e copio.
Leitor ab imo, até de japonês, Santo Deus! O céu é o limite, não é, pai?
Um homem inteligente, curioso e, acima de tudo, sempre surpreendente. Tenho muito orgulho em ter nascido dele, somos parecidos, também eu sou toda direccionada para as letras, a língua, literatura, linguística escrita e leitura sempre e constante.
Herdei do meu pai virtudes e defeitos, discurso e gestos, Tenho muito orgulho em ter nascido dele, no mesmo dia em que ele completava 28 anos de idade. Não é só o meu pai, é meu co-aniversariante também. Nesse dia, sob o signo do Leão, 50% do nosso núcleo familiar faz anos.
O meu pai é um homem extraordinário, daqueles que, a não existirem, teriam de ser inventados.



Margarida Neves
Odeceixe, 23 de Agosto de 2010