
A Tranquilidade de nuvens escondidas
O Mário L. tem trinta anos. É electricista e mora perto de mim, numa povoação que se situa entre Benavente e Coruche. A mulher dele tem 23 anos e trabalha como caixa num supermercado. Têm duas filhas, uma com cinco anos e outra com três. O Mário é um amigo nosso e é um cromo do melhor que há. É um tipo magro, relativamente bem parecido, muito bem disposto, sempre sorridente, como se a vida lhe corresse sempre bem e não tivesse motivos que lhe provocassem aflições na alma (meu Deus, eu sou diametralmente oposta.... como eu queria ter uma costela de Mário!)Como se vê pela idade da mulher dele e das miúdas, ela foi mãe muito cedo... aquilo foi uma coisa assim tipo pedofilia (eu é que o chateio com isso, digo-lhe que ele devia ir preso), porque ele era muito mais velho e meteu-se com ela que tinha 16 anos e depois ela ficou grávida e andou muitos meses até descobrir ou revelar… Foi tudo muito complicado, digno do melhor enredo de telenovela.
A mulher do Mário é uma pessoa estranha. Só estive duas vezes com ela e das duas vezes não consegui conversar com ela. Pareceu-me ausente, indiferente, embora a ocupar-se das miúdas, desconfio que é pouco inteligente, não lhe achei interesse ou fascínio nenhum.
A segunda vez que a vi, foi no verão de 2006. Foi num jantar no Algarve com dois casais que lá estavam de férias e os quatro miúdos deles. Foi aí que senti mesmo esta impossibilidade de chegar a ela, pois com a esposa do outro casal, entendi-me muito bem. E ela não participou na conversa geral, é mesmo uma pessoa estranha, impenetrável ou então básica...
Pessoas mais directas dizem que “ela não bate bem da bola”, o que justifica estar com o Mário, já que ele é um cromo e tanto.
Há quatro dias, como costuma fazer muitas vezes, o Mário apareceu cá no escritório, para cravar um cigarro (fuma ocasionalmente) e falar um pouco, às vezes vem pedir para tirar uma fotocópia ou mandar um fax. Ele é um raio de sol, porque anda sempre a sorrir, o problema são as nuvens que ele ignora. Nesse dia, eu estava bem disposta e conversadora e como gosto muito dele, comecei por perguntar pelas miúdas e pela mulher e já não me lembro como, a conversa derivou para radares de velocidade e apreensões de carta e diz-me então ele que teve a carta apreendida no ano passado. Eu perguntei-lhe em que altura isso tinha acontecido e ele diz que foi entre Março e Setembro... Eu, (já apreensiva) "Mas, olha lá, nessa altura estive eu contigo no Algarve! Como é que foste para o Algarve sem carta?" E ele, "Ah, isso não me incomoda nada, quero lá saber!" E eu (horrorizada) "Mas férias é período de descontracção, de calma, como é que conseguias andar tranquilo????" E ele (sem conseguir entender a minha angústia) "Mas eu andava tranquilo! Ando sempre!" Aí, eu tive uma ideia e perguntei "A tua mulher conduz?" E ele responde "Conduz sim, e todos os dias!" Nessa altura eu respirei de alívio e fiz uma imagem mental do Mário mesmo de férias e a mulher com a tarefa da condução a seu cargo e o meu mundo voltou a organizar-se. Mas essa imagem mental durou poucos segundos e corresponderam à pausa que o Mário fez no seu discurso. Porque ele continuou a frase que afinal tinha deixado a meio. E então ele terminou-a: "Ela só não tem é carta!"
É como digo, quem me dera ter uma costela de Mário!
Margarida Neves
Benvente, Janeiro de 2008