quarta-feira, março 25, 2009

Uma história de coincidência


Pequenas coincidências
(ou o Mundo é uma aldeola)



Germano de Almeida, um inspirado escritor de Cabo Verde, conta, numa saborosa crónica, um episódio que nos espanta a nós, europeus. No entanto é tão representativo do espírito pueril dos cabo-verdianos…
Parece que um dia, um habitante do Fogo, ao chegar à imensa Boston, interpelou um polícia, em crioulo, claro, chamando-o logo de amigo e perguntando pela Nha Bia, mulher também foguense, que havia muitos anos, acolhia os primeiros passos de seus conterrâneos na aventura da emigração para a grande ’Mérca.
Nada de mais absurdo… - pensaríamos nós… - então um anónimo polícia da cidade de Boston é que vai logo conhecer o paradeiro da tal Nha Bia?
Dá para rirmos de tal ingenuidade, certo?
Errado. O tal polícia era um emigrante cabo-verdiano de segunda geração, filho, também ele, de um casal recebido, décadas volvidas, na acolhedora protecção de Nha Bia… mais ainda, acontecia precisamente que, indo lá para esses lados, pensava visitá-la e o amigo poderia ir com ele…
Para nós, uma coincidência extraordinária! Para os cabo-verdianos recém-chegados à grande ‘Mérca nada mais natural – no Fogo, em S. Filipe, também logo alguém o ajudaria, afinal todos se conhecem. Porque haveria de ser diferente em Boston?
Como verifiquei com fascínio, ao longo do meu convívio de três anos de professora em Cabo verde, não é só ao menino e ao borracho que o criador dá sempre a mão – os cabo-verdianos, na sua comovente ingenuidade também fazem parte deste grupo abençoado.
Também ao João, colega de aventuras na escola do Porto novo, Ilha de Santo Antão, anunciando-se de partida para férias, em Portugal, viu-se perante a incrível pergunta:
-“ Vais para Lisboa? Levas uma carta ao Fernando?...”

Imersa neste sentimento Cabo-verdiano de, neste Mundo de Deus, nos acotovelarmos todos, como se partilhássemos a mesma aldeola, passo agora às minhas histórias…

Em Novembro de 1996, estava eu de vigília no Aeroporto de Lisboa, à espera do voo para Londres, onde ia passar uma semana, quando ouço, ao longe, naquele imenso espaço vazio, o guinchado irritante de um carrinho de bagagens a anunciar a chegada de um colega de vigília.
Num país de 11 milhões de habitantes, seria de calcular que essa pessoa fosse um desconhecido, certo?
Errado… naquele bar das partidas, apenas ocupado por mim e pela nostálgica empregada que tanto queria partir e sempre se via ficar (mas essa mulher é de outra história…), naquele bar deserto, dizia, vejo chegar o meu vizinho de aldeia, colega de liceu, e, imagine-se, em fuga para o Canadá, por via de umas negociatas obscuras com uns traficantes espanhóis que, àquela hora andavam aos tiros nos quintais vizinhos do dos meus pais, numa obscura aldeia litoral da Beira…
Na pressa da fuga, apenas conseguira voo para Toronto a partir de Heathrow, pelo que voei com ele para Londres e ainda ele não tinha embarcado para Toronto, já a minha mãe sabia da sua fuga e eu dos tiroteios.
Pois… extraordinário, não é? Para um cabo-verdiano seria natural – ainda hoje me faz sorrir este episódio do meu conterrâneo trambiqueiro que, em fuga, partilha um clandestino voo com uma indiscreta vizinha.

Uma aldeola espalhada por dois continentes, portanto.



Quando eu morava na ilha do Fogo, fui chamada ao Conselho Directivo da minha Escola Secundária, para me ser oferecida a oportunidade de leccionar um curso nocturno de Historiografia. O colega até então encarregado dessa disciplina era o Lívio e, enquanto me passava a pasta, deixou escapar que adorava Portugal, que lá tinha cursado Direito e que, antes de regressar à sua amada D’jar Fogo, tinha feito uma pós-graduação em Macau.
Já dentro deste espírito de vivermos todos numa aldeola, foi sem assombro que lhe contei que o meu Orientador de estágio em Seia, o Vítor, tinha sido professor de português em Macau. O Lívio, ao ouvir o nome completo desse meu orientador deixou escapar um sorriso melancólico no seu rosto impassível e olhando-me fundo nos olhos disse-me:
- O Vítor é um amigo para a vida, sabes? Adoro-o… e tenho orgulho em ter sido o seu melhor aluno…

Uma aldeola espalhada por três continentes, portanto.

O Jorge, meu amigo aqui do Ribatejo, contava-me há dias um episódio curioso. Há uns anos, antes de ser habitual ouvirmos o doce sotaque desse português tropical pelas ruas da nossa vila, morava aqui um brasileiro a quem me apetece chamar Sandoval. Trabalhava nas obras e sustentava a família de mulé e três gurizinhos lá no Pará. Como homem sem famíla, sentia a dor da solidão e costumava deambular pelas lojas abertas até mais tarde, perdendo-se em conversas que lhe espantavam a saudade do seu Brasil longínquo.
Era um sujeito pacato, boa gente, boa onda – todos gostavam dele. Inteligente e intuitivo sabia que se aprende muito mais no ouvir que no falar. Por alguma razão, Deus, que tudo sabe, nos equipou com duas orelhas e apenas uma boca…
Um dia, encostado ao umbral da porta de uma drogaria, vê entrar um sujeito de ar risonho e porte doutoral. Fiel à sua atitude de sempre, dispôs-se a ouvir o que o homem foi dizendo ao dono da drogaria. Mas algo se agitou no seu íntimo…e lhe perturbou o silêncio que tão criteriosamente mantinha. O homem que conversava com o dono da drogaria, embora português, trazia um açúcar no seu falar, uma doce entoação que encheu Sandoval de nostalgia.
- Essi hômi passa tempo no Brasiu, ué…- pensou.
De facto, ele tinha na voz a música do Brasil, polvilhava as palavras com açúcar antes de elas lhe saírem pelos lábios. As frases dele traziam doçura aos ouvidos de quem o escutava. Antes de se conseguir conter, antes da sabedoria de ouvinte o conseguir travar, Sandoval meteu-se na conversa:
- O amigo me desculpe, mais se bem lhe pergunte, o amigo costuma ir no brasiu?
O outro homem, espantado por ouvir falar aquele linguajar em pleno Ribatejo, sorriu e respondeu:
- É verdade, amigo, vou muito ao seu Brasil, sobretudo a Minas, ao Rio Grande e ao Pará…
Um baque seco ecoou no peito de Sandoval.
- Pará? Eu sou do Pará! O Senhor costuma ir ‘ pra Curitiba, é?
- Costumo, claro! Linda cidade…
- Linda, sim…
- os olhos já marejados de lágrimas…a voz embargada.
- O senhor passa lá muito tempo, é?
- Não, os meus negócios são no interior…perto de Curinima.
Novo baque
– Vixe Maria, homi! Essa é minha terra! Ó xente… a prefeitura da minha aldeia!
- Mas sabe, eu não conheço bem Curinima, porque eu nunca me hospedo lá. Passo lá apenas a caminho de uma aldeia muito bonita, onde vou comprar artesanato que um velhinho e sua mulher fazem. E depois vendo-o aqui…
- E se mal lhe pergunte, qual é mesmo o nome dessa aldeia?
Veio à cabeça de Sandoval a lembrança de Mestre Juvenal e sua mulher, Maria Aparecida, entrançando vimes e palhas na soleira da porta… fazendo pequenos milagres em todas as formas já inventadas e algumas por inventar.
- Eu fico sempre numa aldeia onde há uma moça que aluga quartos na sua casa. Não sei se ouviu falar, é Juripitica.
Mestre Juvenal e Maria aparecida materializados ali, sentados à porta da Drogaria, num paciente entrançar de vimes…
- O que é cê tá me dizendo, Homi! Essa é a minha aldeia!
- Ai é? Olha que coisa engraçada… a sério? Então você deve conhecer a moça que me aluga sempre um quarto! Na verdade, vocês até se parecem… no tom de pele, nos olhos…
- de repente, uma ideia – Espere aí… - remexeu cerimoniosamente na algibeira do seu “paletó” e retirou uma foto onde ele e uma bela morena sorriam para a câmara. Atrás deles, uma casinha linda com um alpendre de rosas entrançadas.
Sandoval pegou no retrato, olhou-o demoradamente, olhos húmidos e um soluço preso na garganta. Olhou o homem, olhou o dono da drogaria, que seguia atentamente este diálogo empolgante.
Apoiou-se no balcão, respirou fundo e disse, numa voz doce:
- Que linda ela está, a bichinha…
Deixou o retrato em cima do balcão, despediu-se, com um aceno de cabeça, do dono da loja e do dono da foto e deu dois passos na direcção da porta. Parou, hesitou e virou-se. Fixou o olhar, tão parecido com o da moça da foto, e disse simplesmente.
-Vou dormir, xenti… não é todos os dias que flagro minha irmã caçula no bolso de um paletó desconhecido.



Margarida Neves
Benavente, Março de 2009

sábado, março 21, 2009

Uma História de avaria


A avaria na minha fábrica


A Íris, uma amiga muito querida, olhou-me um dia com os seus olhos muito verdes e francos e disse

Acho que precisas de saber uma coisa... é sobre a tua pele.

Interessava-me o assunto.Havia anos que me debatia no pantanoso terreno da doença sem cura, das possíveis terapias tópicas ou de administração oral, das violentíssimas radiações UVA, das infrutíferas simulações de banho do Mar Morto…
Das sessões em psicólogos sem empenho, em psicoterapias sem profundidade, em psiquiatrias bem intencionadas... e por aí fora.Não posso, de todo esquecer, a irritante boa vontade de todas as criaturas, homens, mulheres, crianças, que se cruzam comigo na rua, em qualquer latitude que me tenha acolhido...Tirando o meu amigo Fábio do Júlio de Matos, que me aceitou como sou, todos os outros me olharam cheios de uma chocada consternação, fizeram comentários desnecessários de tão óbvios e deram sugestões que seriam absolutamente infalíveis.
Não se percebe, assim sendo, a existência da doença... com tanta gente a saber curá-la!
Do mais inofensivo sabonete de alcatrão até ao mais intragável kéfir, passando por óleos, azeites, infusões de eucalipto, vinagre, clara de ovo... enfim.
É uma coisa que me deixa completamente exausta, confesso. Não posso maltratar as pessoas, claro. Elas têm boa intenção, mas tenho de aturar isto cada três passos, de cada vez que ouso sair à rua com a pele doente exposta. É massacrante, acreditem.

Mas voltemos aos olhos verdes da minha amiga Íris.

Bioquímica de formação e sensível a esta minha dor permanente, decidiu nesse dia explicar-me a minha doença: apresentar-me a sua teoria, que passava pela alegoria de uma fábrica de montagem de automóveis.
Era uma tarde de Primavera, em que o Sol convidava a passeios de pele exposta e a mim me atirava para uma clausura depressiva... imposta.

Imagina tu - começa ela - que a nossa pele é feita numa fábrica que temos cá dentro e que demora dois meses a surgir à tona, fazendo uma viagem de construção desde o interior até atingir a superfície, que é o que nós vemos, acariciamos, beijamos.

Imagina uma fábrica com uma linha de montagem de automóveis, em que, ao longo de dois meses, se vão montado a estrutura, o motor, os assentos, os cabedais, os espelhos, os faróis, os detalhes todos todos todos, a pintura e... voilá... vai para o Stand de vendas, lindo e maravilhoso, onde todos o podem ver e alguns até acariciar e beijar...

É assim que funciona a fábrica de pele de uma pessoa saudável. Ao longo de dois meses vai-se construindo e a pele da superfície vai saindo em descamações ínfimas e o processo de construção da derme é feito deste constante ciclo de renovação.Acontece que a tua pele tem uma avaria na fábrica.
A fábrica de automóveis tem uma avaria na sua a linha de montagem.
O processo de renovação da derme, que deveria levar dois meses, acelera inexplicavelmente e apresenta-te a pele à superfície em apenas duas semanas, sem que esteja terminada.
A linha de montagem dos automóveis está a colocar no Stand de vendas automóveis com apenas duas semanas de construção.
A pele, vítima desta falha no processo de renovação da derme, está incompleta. Apresenta-se ao mundo vermelha, aflitiva, constrangedora e a provocar dores imensas e comichões intoleráveis.
Os automóveis vítimas desta falha na linha de montagem apresentam-se ao mundo incompletos, sem rodas, sem espelhos, sem terem sido ainda pintados.
A minha pele, para se proteger das impurezas, para evitar infecções, cria escamas.Um automóvel não pintado cria ferrugem.
O meu automóvel será sempre diferente de todos os outros que circulam pelas estradas da vida.

Mas como dizia alguém, faz parte do meu charme...

Benavente, Março de 2009
Margarida Neves