quinta-feira, novembro 26, 2009

Uma história de psicologia


Psicologia canina

À Manu, que tão bem educou o nosso Max.



Tive o privilégio de viver dois anos com o Max, um delicioso e temperamental Rotty, cuja educação laboriosa esteve a cabo da sua persistente dona, a minha amiga Manu.
Desde muito pequenino, o Max demonstrou ser uma criatura inteligente, mas teimoso até à medula e que usava a sua esperteza para tentar ludibriar a nossa severa vigilância.
Toda a vida tentou vencer os nossos pequenos duelos – toda a vida, todos os dias. Era preciso uma persistêcia à prova de bala para não permitir que ele nos vencesse pela exaustão. Nisso a Manu tem todo o mérito, porque sempre conseguiu a sua supremacia perante aquele adorável teimoso.

Max: E porque razão tinha de ser sempre a dona ou a co-dona a ganhar?
Não podíamos dividir as vitórias das nossas teimosias democraticamente?

O Max, como intuitivo cão de guarda que era, dormia sempre à porta do quarto da dona, para que ela pudesse descansar na certeza de que ninguém a perturbaria.

Max: Claro, ela era a minha dona querida e tomar conta dela era o meu trabalho!

No entanto, numa ocasião em que uma amiga nossa precisou de ficar uns dias em nossa casa, o Max transferiu o seu posto de guarda da porta do quarto da Manu para a porta do quarto dessa amiga.
Na minha modesta opinião, de estudiosa da psicologia canina, essa atitude deveu-se a uma carinhosa concessão que ele nos fez… nós confiávamos na nossas amiga, mas ele nem por isso.

Max: Pois é, minhas queridas, vocês confiam nessa moça e acham que ela é vossa amiga, mas eu sou cauteloso e prefiro guardar a porta dela. Não para que nada de mal lhe aconteça, mas para que ela não vos faça mal a vocês – vocês são umas doçuras, mas são muito ingénuas. Aqui o Max prefere jogar pelo seguro! Óbvio, não é?

O Max, apesar de se ser um temível Rottweiler, era um cão muito doce, um gigante bonacheirão. Os nossos amigos nunca tiveram medo dele, nunca se sentiram intimidados pelo seu tamanho ou pelos seus caninos enormes e assustadoramente afiados.
No entanto, nunca conseguimos que ele se portasse civilizadamente com o simpático Sr. Jerónimo! Todos os dias ele vinha a nossa casa entregar o correio e todos os dias o Max lhe rosnava e fazia com que ele se afastasse respeitosamente. Nem o facto de nós o cumprimentarmos, nem o facto de ele ser sempre uma criatura sorridente, demovia o Max dessa antipatia clássica entre carteiro e cão.

Max: Todas as pessoas se interrogam porque razão nós, cães, temos um ódio de estimação pelos carteiros… bem, a mim parece-me óbvio! Nós somos educados para proteger a casa dos nossos donos; Somos incentivados a gostar dos amigos e a repelir os desconhecidos que não são bem vindos. Então, porque razão deveríamos nós cumprimentar com entusiasmo aquela pessoa insistente que todos os santos dias aparece em casa do nosso dono e nunca nos é apresentado, nunca é convidado a entrar?





Margarida Neves
Benavente, 26 de Novembro de 2009-11-26

segunda-feira, novembro 23, 2009

Uma história de penas


A culpa é das galinhas



A prenda do pai

O pai esperava tudo daquele dia de Agosto. Nascido sob o signo do leão, era positivo e sensato, sem nunca se deixar levar pelos delírios do optimismo. Esperava um dia de sol, uma ida à praia, uma boa refeição, talvez uma prenda, até. Faço hoje 28 anos…- pensou - mereço uma prenda!
E a minha mãe, deu-lhe uma bela prenda! Um emergente rolinho de carnes rosadas, que mal se viu fora do ventre materno, largou num berreiro sem fim. Uma prenda e tanto.
Uma filha, como prenda do seu vigésimo oitavo aniversário.
Ainda hoje o deverá pensar – que bela prenda esta me saiu…

esta sou eu

Numa arrumação do sótão dos meus pais, há pouco tempo, encontrei um misterioso papel: a factura comprovativa da compra feita naquele dia de Agosto. Passada pela secretaria da Maternidade de Coimbra, cobrava aos meus pais 400$00. É esse o meu valor – uns enigmáticos 400$00.
O meu irmão mais velho, cuja condição de primogénito bem tentei, sem sucesso, trocar por um prato de lentilhas, teve, nos idos de 1968, a honra suprema de ser conduzido da maternidade a casa num táxi. Um símbolo profético da sua elevada nobreza de espírito.
Eu, no entanto, tive direito a um transporte intrigante. Uma vizinha emprestou ao meu pai uma camioneta e ele, encartado no ultramar, em Moçambique, onde aprendeu a conduzir pela esquerda, concedeu-me o supremo tratamento de me ir buscar pessoalmente e de me conduzir a mim e à minha mãe para casa. A minha mãe ressalta sempre o prestígio que é ser-se conduzida pelo pai… eu tenho as minhas dúvidas.
Não que eu não confie no meu pai, claro que sim, mas a tal camioneta era usada no transporte de galinhas… A minha primeira viagem foi povoada por uma nuvem de penas! Profético, também.
As penas entraram-me na alma e ainda hoje, comparando-me com a nobreza edificante do meu irmão, sigo a minha vida imersa numa colorida e cacarejante personalidade.


Margarida Neves
Benavente, Abril 2009

Uma história de idades


“Que idade me dás?”




Se há resposta que me irrita é aquela que tanta gente dá, quando lhes perguntamos a idade. Nem sequer é bem uma resposta, é antes uma contra-pergunta.
- Que idade tens?
E logo essa irritante contra-pergunta:
- Que idade me dás? (grrrrrrrrrrrrrr)
Irrita-me por três motivos: um de ordem pragmática, outro de ordem linguística e ainda outro de ordem existencial.
Em termos pragmáticos porque uma pergunta pressupõe uma resposta, a menos que seja uma pergunta retórica. A pergunta representa o início de um ciclo que será fechado pela resposta (até em termos melódicos). Se em vez de uma resposta surge uma contra-pergunta, o ciclo não se fecha, antes pelo contrário inicia-se outro ciclo.
Em termos linguísticos é uma dinâmica contra natura: o homem planta, a terra dá - não é o homem que dá; O homem tem sede, bebe água – não é a sede que bebe água. Esta falta de lógica na construção de um ciclo pergunta – resposta só pode ser banida se o emissor for como eu e finte o processo:
- Que idade tens?
- Que idade me dás?
- Que idade achas que eu penso que tu tens?
Hehehehehehehehehehehe…..

Finalmente, em termos linguísticos, sabemos que neste mundo consumista ninguém dá nada a ninguém. Como diz – e bem – o David Lodge, “There are no free lunchs”. Ninguém dá valores a ninguém, muito menos uma coisa tão abstracta como idade. Quando muito ficciona-se uma idade mais agradável, em troca da simpatia do interlocutor. Além disso, a pessoa já carrega nos ombros a sua idade, porque razão lhe hei-de dar mais ainda?
Para além disso, há ainda outra questão que me irrita tanto ou mais que a tal contra-pergunta: porque razão as pessoas de menos de vinte anos querem parecer ter mais idade e as pessoas de mais de trinta anos querem parecer ter menos? As pessoas terão perdido o juízo? Não se lembram que tudo tem o seu tempo, que não vale a pena querer acelerar ou retardar a passagem do tempo, de forma irresponsável ou patética?
E que parvoíce é essa de querer aos catorze anos fumar ou ter relações sexuais para parecer mais velho ou aos sessenta fazer plásticas dispendiosas e dolorosas para parecer mais novo? É uma atitude parva, que não disfarça nada e apenas fragiliza a imagem de quem entra nesse processo de aceleração ou retardamento.
Aos catorze anos precisa-se de saúde, de ar puro e não de empestar os pulmões em crescimento com o fumo dos cigarros.
Aos sessenta temos vivências do nosso caminhar, temos um património de experiências e memórias. Apagar as rugas é como anular esse património. Qualquer uma dessas atitudes é idiota. No fundo, resume-se a isso: uma atitude idiota.
Tenho duas propostas para combater a irritante contra-pergunta - Que idade me dás?:
- Que idade tens?
- Que idade me dás?
- Eu não dou, vendo! Se pagares bem, ponho-te no infantário; se fores sovina, ponho-te no lar de idosos.

Ou então:
-Que idade tens?
- Que idade me dás?
- Depende, se tiveres menos de vinte dou-te mais cinco; se tiveres mais de trinta, dou-te menos dez.

“O tempo pergunta ao tempo o tempo que o tempo tem. E o tempo responde ao tempo que o tempo tem o tempo que o tempo tem.”

Tenho a idade que tenho, a que figura no meu cartão de identidade. Carrego com orgulho o meu património de memórias. Dou-vos a idade que vocês têm e peço-vos que se orgulhem dela, não a escondam, nem a neguem.
A nossa idade é o conjunto de pegadas que deixamos para trás no caminho que já percorremos. A nossa vivência, as recordações, a experiência são o rasto que deixamos no trilho que Deus nos deu para percorrermos.


Margarida Neves
Praia de Mira, 22-11-2009

sexta-feira, outubro 16, 2009

Uma história de árvores


Paraíso alienado







O Júlio de Matos continua a ser, para mim, a ilha do Reino dos Céus.
São nove horas de uma manhã de Outono, banhada de um sol dourado que se reflecte docemente nos relvados e no arvoredo, e estou na esplanada a ver os aviões que se fazem à pista. É sempre bom regressar a esta ilha, este paraíso alienado.
Na sala de espera, aguardo a minha consulta. As pessoas ao meu redor são peças do nosso puzzle social: pessoas novas, de meia-idade, velhas, várias raças, múltiplos credos…
Uns lêem, outros olham a televisão com interesse, outros ainda miram-na com expressão estupidificada. Alguns têm um olhar perdido, afogados numa imensa dor, à qual parece resistirem com a muralha da indiferença.
O que se passará na cabeça desta gente? Estarão a pensar no resultado do jogo da selecção? Nas compras que têm de fazer para o jantar de logo à noite? Na tristeza de ver a vida fugir-lhes debaixo dos pés, enquanto se atarefam a ganhá-la?
E os alienados, os de olhar perdido (os mais fascinantes) em que pensarão eles?
Em que sentimentos e pensamentos navegam esses? Flutuam, com certeza buscando à deriva uma qualquer salvação redentora. Ainda bem que deram à costa desta ilha do Reino dos Céus. Esta gente perde-se em que pensamentos? No último livro que leram? (as histórias dos livros fazem-nos sofrer menos do que as reais…) Lembram a última sinfonia que ouviram? Naqueles acordes harmoniosos , tão reconfortantes para quem navega à deriva?
Esta gente, de alma artística e tão longe dos padrões da normalidade fazem-me sempre lembrar as árvores retorcidas, diferentes das outras direitinhas, verticais, de tronco liso, sem contornos e sem ramos retorcidos. Essas são o espelho das pessoas ditas normais – tão aborrecidas e boçais, sem oscilações de génio, sem destaque na monótona floresta social.
Pelo contrário, as árvores retorcidas primam pela diferença, são muito mais complexas, são monumentos vivos de tanto sofrimento. Os seus ramos tortos, buscando o céu, indicam as viragens de uma caminhada tortuosa. O tronco rugoso é testemunha das cicatrizes, é uma capa de protecção na qual se refugiam da dor.
Sem que eu dê por isso, mergulhada que estou nos meus pensamentos, uma senhora senta-se ao meu lado e dá-me uma cotovelada cúmplice. Olho-a espantada e, finalmente, reconheço-a. Moramos na mesma terra, ela trabalha no hospital e é irmã de um poeta muito querido no Ribatejo. Tem um nome genial, uma autêntica antítese: chama-se Maria da Paz Guerra. Pelo que me conta, explicando a sua presença naquele sítio, o irmão dela, o poeta, é doente bipolar e vem regularmente à consulta de rotina.
Desta vez, acompanhou-o e veio ter comigo quando me reconheceu.
De repente, faz-se luz no meu espírito: o poeta, claro. Recentemente publicou um livro de poemas e eu até fui à apresentação na biblioteca da nossa terra. A alma sensível, o temperamento de génio, o talento imenso, a criatividade brilhante, os longos tempos de reclusão. O poeta, João Maria Guerra, é, afinal, doente bipolar. Claro, faz sentido.
Conheço bastante bem a doença bipolar. Indivíduos oscilantes entre uma tristeza avassaladora e uma alegria criativa e brilhante. Interessei-me pelo assunto e perguntei à Maria da Paz como estava então o irmão.

Felizmente bem – tem andado muito estável e capaz de escrever. Mas precisa da segurança destas consultas de rotina.

Como eu o compreendia! As consultas, as visitas à ilha do Reino dos Céus são a âncora do nosso navegar.
Conto-lhe a minha teoria da ilha e ela concorda logo comigo. Louva-me a criatividade e a argúcia dessa analogia. Efectivamente, os frequentadores do Júlio de Matos são, como a minha teoria defende, os legítimos merecedores do Reino dos Céus.
Fala-me do irmão. Nota-se a paixão que tem por ele, o orgulho que sente em ser sua irmã. Na casa dele não há cão nem gato que passe fome. Há sempre uma tigela de comida na soleira da porta. Convida toda a gente para a sua mesa. A sua mulher, Ofélia (que nome tão certeiro para a esposa de um poeta!) adora-o e aceita estas excentricidades, a generosidade imensa, deste homem de brandos gestos e olhos luminosos.
Maria da Paz interrompe este relato apaixonado e interessa-se por mim.

E tu, minha querida, que fazes aqui?

Conto-lhe o meu mal, o quanto me faz bem vir ao Júlio de Matos, o quanto ando bem, estável, serena, em paz.

És também uma Maria da paz…

Sorrio-lhe

Sou… graças a Deus, sou. Finalmente.

Ficamos em silêncio, numa serena homenagem àquele lugar abençoado, refúgio de tantas almas perdidas.

Vamos, mana?

O poeta João Maria Guerra, essa maravilhosa e imponente árvore retorcida, toca ao de leve no ombro da Maria da Paz, arrancando-nos ao nosso silencioso entendimento.

João, deixa-me apresentar-te a Margarida. Ela é professora de Português e de certeza que vais adorar conversar com ela!

O poeta, mostra logo a sua hospitalidade

Margarida, muito prazer! Venha tomar chá lá a casa. Eu e a Ofélia adoramos receber pessoas…

Maria da Paz levanta-se, pega no braço do irmão e despede-se.

Minha querida homónima… fica bem!

Uma auxiliar aproxima-se de mim

Margarida? Gabinete 12.

Levanto-me e olho com ternura para aqueles dois irmãos que se aproximam da porta de saída, uma árvore direita, de braço dado com uma árvore retorcida.
Dirijo-me ao gabinete 12, onde a minha médica me espera. O gabinete 12, aquele cantinho na ilha do Reino dos Céus, esse meu paraíso alienado.

Vim mais tarde a falar de poesia com o João Maria Guerra, em casa dele, em frente a uma chávena de chá.
Mas isso é outra história.

Margarida Neves
Júlio de Matos, 15 de Outubro de 2009

quarta-feira, outubro 14, 2009

Uma história de paciências

















De Ampulhetas e Clepsidras



Ao meu querido André João, lembrando mais uma das nossas conversas.

Já vos ocorreu, por que razão, quando nos referimos à paciência, usamos verbos como ter, gastar, perder, esgotar? Fica-se com a sensação de que a paciência é uma substância, como a água de uma clepsidra, ou a areia de uma ampulheta. Sendo assim, será que a paciência, depois de esgotada, se renova? Será que é sempre a mesma e se renova assim, vindo do nada, como se fosse uma substância ciclicamente regenerada?
Efectivamente, se alguém tem paciência é porque possui algo palpável e se a perde, diminui a quantidade desse algo, e, no final, se ela se esgota, desaparece de todo.
O dicionário regista na sua entrada “Paciência”:



s. f.
virtude que consiste em suportar os males ou os incómodos sem queixume e com resignação; qualidade de paciente; perseverança;
interj. designativa de resignação;
Paciência de Job: grande resignação;
Paciência de Santo: grande paciência



Pela referência ao bíblico Job e ao Santo, podemos verificar que essa “água” ou “areia” têm um cariz divino, mas que são, de facto esgotáveis, já que se diz também que “é de esgotar a paciência a um santo”.
A minha pergunta imediata é se todos nós fomos divinamente agraciados com a mesma quantidade de paciência ou se uns, os impacientes, já nasceram com menos do que os outros, os pacientes.
Admitamos que a paciência é a substância presente numa clepsidra e consiste na água que escorre lentamente, ou então é a areia que existe dentro de uma ampulheta. No entanto, essa clepsidra ou essa ampulheta têm uma pequena comporta que nós próprios, donos dela, gerimos (consoante a nossa generosidade ou entrega) e que vai doseando a saída da água ou da areia.
Assim, a nossa paciência vai-se esgotando, vai inevitavelmente escorrendo conforme o grau de abertura da nossa comporta. Assim ela se esgota completamente quando o massacre abre de vez as comportas.
Mas a paciência, esse Litro de água, esse Quilo de areia, volta a existir na nossa clepsidra ou ampulheta, (na verdade ela esteve sempre lá, na parte de baixo, parada, na sua forma inactiva).
E quando volta a poder escorrer e gastar-se, é porque a nossa generosidade permitiu a reviravolta, a regeneração. Mudam-se ideias, vira-se a clepsidra ou a ampulheta ao contrário e inicia-se novo ciclo de esgotamento.
E a nossa cabeça é precisamente redonda, para que possamos mudar de ideias, alterar os pontos de vista, renovar a paciência, enfim, dar espaço à ampulheta para que ela se volte e fique, novamente, na sua parte activa, cheia de areia, ou seja, de paciência.

Margarida Neves
Benavente, 14 de Outubro de 2009

domingo, outubro 11, 2009

Uma história comercial


Franchising e Consignação

Há dias, ocorreu-me a seguinte ideia: de uma forma simplista, existem dois tipos de, digamos, relação hierárquica comercial entre marcas e lojas, sendo elas o Franchising e a Consignação.
Enquanto no Franchising a loja se compromete em absoluto e em exclusivo a vender apenas artigos da marca que representa, sendo que os artigos não vendidos não podem ser devolvidos à procedência, na Consignação é vendida a marca com a qual se tem um relativo e parcial compromisso, mas o que não é vendido retorna à fábrica da marca que, em parte, se representa. Ao contrário do Franchising, a Consignação não é uma relação de absoluta e exclusiva fidelidade.

Assim também as relações humanas.

O dicionário, a propósito de Consignação, diz-nos o seguinte:
Consignação: substantivo. feminino.
depósito de valores em cofre oficial para pagamento de despesas obrigatórias;
entrega de mercadorias que o produtor faz ao negociante para este as vender por conta
daquele;

Quando a minha avó Amândia e o meu avô José Balseiro se entregaram um ao outro em matrimónio em 1935, fizeram-no na modalidade de Franchising. Comprometeram-se em absoluto e exclusivo a serem apenas um do outro e a dedicarem a sua vida a um matrimónio que apenas a morte separaria.
A minha avó, órfã de mãe, desde a gripe espanhola de 1918, não poderia ser devolvida ao pai, se o meu avô não a quisesse mais. Na saúde e na doença tinham prometido um ao outro ficarem juntos. E tiveram muitos períodos de adversidade, mas ultrapassaram-nos juntos, dentro do espírito que eu penso ser o do verdadeiro matrimónio. Espírito esse que os nefastos e modernos ventos da mudança degradaram até se chegar a estas lamentáveis relações de Consignação.
Hoje em dia, qualquer desentendimento, qualquer ridícula incompatibilidade de personalidades é motivo de separação, de lares desfeitos, de crianças a crescer sem terem os pais juntos, sem terem a harmonia de uma verdadeira família. Não me venham dizer que crescem felizes, porque, como professora, sei ver as diferenças entre filhos de famílias e filhos sem pai ou mãe por perto para o beijo de boa noite. Vejo pelo equilíbrio emocional dos meus três sobrinhos o quanto eles (e eu) podem agradecer o equilíbrio da sólida relação que o meu irmão e a minha cunhada construíram.
Nestas relações tão modernas de Consignação, o matrimónio é apenas um compromisso relativo e parcial que dura enquanto durar, os casamentos duram enquanto durarem e as pessoas, alucinadas saltam de cama em cama, de casa em casa, de amor em amor, num frenesim degradante. Quando a Consignação termina, o parceiro que supostamente era para toda a vida é descartado e devolvido à providência e os filhos do moribundo amor de ambos são colocados na prateleira que esse fosso entre os pais cria. Sendo a Consignação uma relação de fidelidade, apenas relativa e parcial, será essa falta de fidelidade uma das maiores causas da ruptura do tal casamento que era para ser para sempre e foi apenas até que o juiz os separou.
Sabemos bem, neste mundo promíscuo, que é essa a triste realidade.

Termino estas minhas divagações com a letra de uma belíssima canção cantada por Adriana Calcanhoto que é bem exemplificativa de uma Consignação que chegou ao fim:

Devolva-Me

Rasgue as minhas cartas e
Não me procure mais
Assim será melhor, meu bem.
O retrato que eu te dei,
Se ainda o tens não sei,
Mas se tiver, devolva-me.

Deixe-me sózinho porque assim
Eu viverei em paz,
Quero que sejas bem feliz
Junto do seu novo rapaz.

Rasguei as minhas cartas e
Não me procure mais
Assim vai ser melhor, meu bem.
O retrato que eu te dei,
Se ainda o tens não sei,
Mas se tiver...
Devolva-me.
Devolva-me.
Devolva-me.

Conseguem sentir a tristeza deste fim? O desgosto de não ter havido solidez e persistência para permanecerem juntos?
Eu consigo…


Margarida Neves
Benavente, 2008/ 2009

sexta-feira, setembro 04, 2009

Uma história de delírio


O estrangeiro


Um olhar perdido, alheado da realidade. Um sorriso sem razão aparente (talvez ditado pelas cores deslumbrantes do labiríntico delírio).
Ali estava ele, criatura de Deus, verdadeiro inquilino da ilha do Reino dos Céus. Na mão um livro lido e relido. Sorrio ao ver o título. O estrangeiro de Albert Camus. O relato de um homem enclausurado na sua própria redoma, separado do convencional senso comum.
O meu companheiro naquela sala de espera do Júlio de Matos será, por ventura, o leitor mais habilitado para entender as angústias do estrangeiro de Camus.
Ainda não o sabia, mas ia começar um dos diálogos mais interessantes da minha vida. Enquanto esperávamos a consulta com a médica, por acaso a mesma, matámos o tempo a conversar (matou ele, eu investi).
Chegou o sol – disse – e vai ter de ficar no quarto ao lado. Ouvi dizer que veio para ficar… mas não trouxe bagagem.
uau… isto promete – pensei, os meus olhos já brilhantes de antecipação, pronta para mergulhar nas cores daquele delírio. - O que se seguirá à meteorologia?
Gostas de chuva?
– o olhar dele concentrado, a ver se o sol partia e o quarto vagava.
Adoro chuva! – respondi-lhe, a memória presa aos três anos de Cabo Verde – vivi num país seco e preciso muito do verde.
Muito prazer, eu sou Verde
– um aperto de mão inesperado e uma guinada no tema da conversa – o Sporting ontem perdeu – um risinho cheio de ironia – mas perdeu com tranquilidade.
E tu, gostas de chuva? Uma pergunta a prendê-lo à realidade. Ficou preso à ironia.
Às vezes é uma seca.
A chuva mata a seca
– contrapus.
A seca chama-me a mim – completou e rematou.
Virou a página da conversa
Gosto de ler, adoro livros
Gostas? Fazes bem, a leitura faz falta a toda a gente. Sou professora de Português e sempre acreditei nisso!
Então explica-me lá porque razão separado se escreve tudo junto e tudo junto se escreve separado…
Mas onde vai buscar ele estas coisas??
– e eu desejosa que médica se demorasse muito até chamar um de nós. Aquilo estava do melhor!
Ancorou-se então à realidade e contou-me a sua história. Tive dificuldade em acreditar no que ouvia, por ser ele a contá-lo e por ser tão incrível, um enredo delirante. Mas no hospital confirmaram-me a sua história. Dava para entender porque razão se tinha exilado voluntariamente num mundo só dele.Num assomo impressionante de lucidez, contou
Eu era professor de História e fui dar aulas para a Universidade de Campinas, a convite do Instituto Camões. Foi lá que conheci a Melissa. Filha de brasileiros e neta de italianos era professora assistente de Antropologia. Na mesma universidade. Apaixonámo-nos e casámos. Quando eu a tentava convencer a virmos para Portugal, surgiu-lhe o convite para ir estudar no terreno uma tribo da Amazónia. E foi isso que aconteceu – perdi-a. Ela despojou-se da sua identidade e juntou-se àquela tribo. Cortou o cabelo como eles, pintou o rosto, adornou-se com bocados de madeira e, acredito, diz-me que é feliz naquele mundo puro e verde.
Perdi a fé na vida. Voltei para cá e entreguei-me à solidão. Nunca mais fui alguém.
Lágrimas nos olhos, um brilho de desvario.
Se chover nasce verde, verde é bonito.
Verde é esperança…
- procurei confortá-lo.
Para mim não – a esperança perdeu-me no meio do caminho. Gostas de poças de água?
Depende, se escorregar, molho-me.
É bom
– esconde as lágrimas.
A enfermeira interrompeu-nos e chamou-o para a consulta. Que ironia, o nome deste homem!
Senhor Felisberto Verde, gabinete 12…


Margarida Neves
JM, 27 de Agosto de 2009

sexta-feira, agosto 28, 2009

Uma história de sobrevivência

De cinco a seis










À minha amiga Leonor, uma sobrevivente.


Foi nesse dia que soube a notícia. Assim, sem mais rodeios, de forma cruel, como o golpe de um bisturi. Lembro-me que ele se levantou calmamente depois de mo dizer, colocou uma caixa de lenços de papel à minha frente e disse:
Chore.
E eu fiquei ali no vazio, a fitar sem ver o rio azul que atravessa preguiçosamente a cidade de Coimbra. O mundo acabava de cair com estrondo em cima da minha cabeça e eu não reagia, estava entorpecida. Fitei a caixa de lenços inúteis à minha frente, como se aguardasse uma reacção minha.
Há que reconhecer que o oncologista é correcto. Só tem de me dar a notícia e lenços – estava tramado se tivesse de consolar todos os seus doentes…
Pensei.
Consegui finalmente dizer o nome dele, do mal que crescia em mim. Murmurei um palavrão…
Ele apanhou-me. O filho da mãe do cancro apanhou-me.
Naquele momento, percebi que não estava preparada para morrer – não naquela altura da minha vida, aos 32 anos. Vieram-me à memória os sorrisos luminosos dos meus três filhos, o calor do abraço do meu melhor amigo, que era também o meu marido, as gargalhadas dos meus pais quando brincavam com os netos. Tinham cinco netos, dois do meu irmão e três meus – três rapazes e duas raparigas.
Tenho de vencer isto
Decidi.
A minha família precisa de mim. Os meus amigos precisam de mim. Não me posso dar ao luxo de os abandonar.
Uma força inundou-me de luz. Levantei-me
Vou vencer isto
Declarei em voz bem alta, para que o inimigo me ouvisse.
Saí do consultório e fui para casa, para consolar e dar força às pessoas que iriam saber nesse dia da luta que íamos travar.
Pedi na recepção para falar com o oncologista para marcar a operação e a quimioterapia. Se ia haver luta, que começasse já.
A caminho de casa, tomei uma resolução. Ia tratar de um pormenor, antes que ele tratasse de mim. Cumprimentei a cabeleireira e, antes que ela assumisse que eu queria o corte de sempre, pedi-lhe que me cortasse o cabelo a pente 3.
Mulher de coragem!
Sorri para o espelho
…nem tu sabes quanto!...
Parei numa loja para comprar uma boina, uma peruca bastante verosímil e uns lenços de padrões alegres. Primeira batalha ganha.

Cheguei a casa no momento em que almofadas voavam pela sala. Os meus três saltaricos moíam a paciência à minha mãe. Olhou-me, intrigada.
Filha! Vais para a tropa?!
A mãe vai para a tropa, a mãe vai para a tropa!
Os gémeos marchavam pela sala, com a pequena a segui-los.
… um dois, um dois, esquerda direita, esquerda direita…
A minha mãe não perdeu uma oportunidade para fazer uma das suas piadinhas:
O teu marido está no duche – vai-lhe fazer a recruta…

Ouvi à distância, uma desafinação a plenos pulmões. Comparado com o meu marido, o bardo do Asterix é afinadíssimo. Pousou o microfone, desligou a água e olhou para mim com um olhar interrogador
Tenho uma boa notícia!
Disparei.
Foste promovida a militar de alta patente!
Sorri-lhe
Não, melhor, vou-me curar de um cancro da mama.
Saiu do duche, numa calma aparente e agarrou-me os ombros e fitou-me, com olhos cheios de preocupação.
Promete-me que vais mesmo.
Vou.
Respirou fundo e abraçou-me
Vamos!

Ao jantar participámos aos nossos filhos a novidade. Falámos calmamente, sem alarmismos. Eles ficaram em silêncio e um dos gémeos perguntou se eu ia ficar boa.
Vou sim.
Vai sim, filho.
Então está tudo bem!
Respiraram os três de alívio.
Eu gosto muito de ti, mamã
Afirmou a pequenita, com a certeza dos seus três anos.
Nós também.
As vozes dos gémeos em coro terminaram a conversa.

A operação correu bem. A minha mãe e o meu pai acamparam lá em casa para cuidarem dos gémeos e da pequenita.
Começaram os tratamentos, cada sessão uma batalha dura. Cada sessão vencida, um gosto de vitória, uma promessa de final feliz.
Para não assustar os meus filhos, propus-lhes um jogo que tinha aprendido num filme. O meu marido, todo entusiasta, juntou-se ao desafio: cada dia tínhamos de seleccionar o momento alto e o momento baixo que nos tinha acontecido. Aplaudíamos os momentos altos de todos e analisávamos preventivamente os momentos baixos.
Hoje marquei um golo, mamã!
E tive medo de uma iguana…
Eu comi os cereais todos, mas parti a tigela.


Eram assim as conversas ao jantar. Longe de ambientes macambúzios, longe do inimigo que espreitava. Dar-lhe importância seria fortalecê-lo – era essa a nossa convicção.
Foi por essa altura que conheci o Ismael. Mulato de Cabo verde, era órfão e estava internado no IPO. Era natural da ilha do Fogo e descendia de um garboso francês que fora exilado nessa ilha e tinha espalhado profusamente os seus genes. O Ismael Montrond era de um exotismo deslumbrante. Pele dourada de mulato claro e olhos de um azul intenso. Era um rapazinho triste, em busca de um dador compatível que lhe travasse a leucemia. Para o confortar, integrei-o na minha família e iniciei-o no ritual dos momentos altos e baixos. Às vezes levava-o lá para casa e jantava connosco, antes de o levarmos de volta ao IPO. Esses eram, invariavelmente, os seus momentos altos.
No início, o Ismael era muito tímido e mal se atrevia a falar o seu português vacilante. No entanto, depressa se habitou às guerras de almofadas com os gémeos e a tomar chá com as bonecas da nossa pequena. Percebi que se tinha integrado na família quando todos nós começámos a usar palavras em crioulo sem darmos por isso.
Aconteceu entre nós e o Ismael uma osmose, um fenómeno saudável, próprio de náufragos na mesma ilha.
Os meus tratamentos terminaram, o cabelo começava a crescer, a mama ia ser reconstruída. Aparentemente, estava a vencer a batalha. Mas continuei a visitar o IPO diariamente para ver o Ismael. O dador tardava em aparecer, mas ele era forte, resistia e tinha sempre um sorriso para mim.
Também ele teve um final feliz. Finalmente transplantado, recuperou rapidamente e veio passar uns tempos com a nossa família, antes de regressar ao orfanato na sua ilha natal.
O Ismael ficou connosco, tão nosso filho como os três biológicos. Com a minha doença ganhei mais um filho; com a doença dele ganhou uma família. Ambos passámos um momento baixo, mas compensado, de longe, por um permanente momento alto.
De cinco passámos a seis, de felizes passámos a muito felizes. Muito mesmo, - Hodje nos tá tchéu feliz.
Margarida Neves
Benavente, Agosto de 2009

quinta-feira, julho 16, 2009

Uma história de chegadas


Maria Nostálgica

Parte II


Ainda à Íris...

PAUSA PARA CAFÉ

Até a Maria nostálgica, a insignificante empregada do bar das partidas, um pontinho minúsculo na imensidão de pessoas, bagagens, pistas e aviões, precisava às vezes de um café. Sobretudo quando a sua imensa tristeza a assolava e desolava. Aquela vida, todos os dias, a acorrentar-lhe os pés à terra…
A colega dela, Madalena, que nesse momento descansava em casa o cansaço do turno da noite, já notava a tristeza da Maria havia meses. Nesse dia (talvez por eu estar a contar esta história), tomou uma decisão antes de adormecer ao som daqueles ruídos de aviões a chegar e a partir, ruídos que a perseguiam até casa, impregnados na memória de um cérebro cansado.
Tomou uma decisão, dizia eu:
Amanhã, quando encontrar a Maria, vou agarrar coragem e perguntar-lhe o porquê de tanta tristeza. Ela tem tudo o que eu desejava ter e não tenho. E de nós as duas, a triste é ela! Eu é que devia andar infeliz, ela não… amanhã vou-lhe perguntar. Não passa de amanhã.
Não vou aqui reproduzir o diálogo das duas – há que ter um mínimo de decoro nesta vida de contar histórias. E já basta a vida da Maria que eu devassei para vos explicar a tristeza dela.
Posso, no entanto, resumir o que as duas disseram uma à outra…
A Maria contou a tristeza de ser sempre a que fica, apesar de ironicamente, ser a que mais queria ir. Madalena, ao princípio, deixou-a falar na correcta e sensata atitude de quem ouve um desabafo. Quando a Maria terminou, ainda fez uma tímida tentativa de lhe lembrar filhos, marido, casa, jardim, cão… mas até ela pressentia que a realidade não era feita da mesma matéria que os sonhos.
E era um sonho o que pairava no olhar de Maria, enquanto viajava pelos destinos escritos em letras luminosas do painel informativo no átrio do aeroporto.
De repente, Madalena sorriu: uma ideia tinha-se iluminado dentro dela.
Despediu-se apressadamente da colega e dizendo-lhe que tinha de ir para casa, esgueirou-se pela porta que dava acesso à administração do aeroporto.
E esta história termina aqui.
Passados poucos dias, Maria foi transferida para outro bar, o das chegadas. Lá assistiu vezes sem conta à alegria de quem regressava ao país do sol.
E foi no bar das chegadas que percebeu que, afinal, a sua realidade era o sonho daquelas pessoas que vinham de longe, em busca do calor da Pátria

Claro que um dia viajou com o seu marido. Mas isso é outra história.

Margarida Neves
Benavente, 1 de Julho de 2009

segunda-feira, julho 06, 2009

Uma História de partidas


Maria Nostálgica

À minha amiga Íris, que me sugeriu o final desta história


Esta história fala de uma mulher já mencionada no meu texto anterior, Pequenas coincidências… trata-se da senhora que estava no bar das partidas, no aeroporto de Lisboa, quando me apareceu o meu vizinho trambiqueiro.
Esta senhora, chamemos-lhe Maria Nostálgica, à semelhança daquele primor de desconstrução do Chico Buarque, no poema Construção, vivia imersa e sufocada na sua rotina.

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único…

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico…


Assim era a vida da Maria nostálgica. Tudo sempre igual, tudo com sabor a requentado, nada de novo, nada de excitante, nenhuma pincelada de cor na sua vida tão cinzenta.
Gostava do marido, claro. Amava os filhos, óbvio. Tinham dinheiro para viver, tinham saúde…tinham uma casinha aconchegada num bairro solarengo, plantas, um cão…
Sejamos francos: Maria nostálgica era medianamente feliz, dentro da rotina que não a deixava sonhar além-fronteiras.
O despertador arranca-a da letargia do sono. Duche, roupa escolhida de véspera, beijo apressado no marido e nos filhos adormecidos e viagem até ao aeroporto, ao som das vozes sorridentes da Carla Rocha e do Zé Coimbra no Café da Manhã da RFM.
Trabalha por turnos, esta é a semana de entrar às 7h00 – estaciona o carro no parque dos funcionários do aeroporto e dá entrada no bar das partidas, substituindo a colega Madalena, que nessa semana tinha o turno da noite.
A sua vida era aquela: servir cafés e bolinhos às pessoas que iam sair do país. Servia o último café de aroma nacional a passageiros que iam voar para longe. Ouvia conversas, conversas de excitação de quem ia viajar, lamúrias de despedidas de quem deixava amigos e família. O ambiente daquele bar era povoado de conversas em várias línguas e diferentes tons. Enquanto tomavam o seu café ao balcão, homens de fatos irrepreensíveis ultimavam ao telemóvel detalhes das suas viagens de negócios.
Depois, cada um chamado pelo relógio, afastava-se arrastando atrás de si as bagagens e deixando o bar deserto e uma Maria Nostálgica, olhos rasos de lágrimas e num desejo de tudo largar e partir também.
Triste ironia esta de tanto querer conhecer mundo e desse aroma exótico apenas sentir o entusiasmo de quem estava para partir.
Era esse o drama de Maria Nostálgica Era essa a sua dor.

PAUSA PARA CAFÉ
Continua...
DESAFIO:
Alguém tem uma sugestão para o final desta história?

quarta-feira, março 25, 2009

Uma história de coincidência


Pequenas coincidências
(ou o Mundo é uma aldeola)



Germano de Almeida, um inspirado escritor de Cabo Verde, conta, numa saborosa crónica, um episódio que nos espanta a nós, europeus. No entanto é tão representativo do espírito pueril dos cabo-verdianos…
Parece que um dia, um habitante do Fogo, ao chegar à imensa Boston, interpelou um polícia, em crioulo, claro, chamando-o logo de amigo e perguntando pela Nha Bia, mulher também foguense, que havia muitos anos, acolhia os primeiros passos de seus conterrâneos na aventura da emigração para a grande ’Mérca.
Nada de mais absurdo… - pensaríamos nós… - então um anónimo polícia da cidade de Boston é que vai logo conhecer o paradeiro da tal Nha Bia?
Dá para rirmos de tal ingenuidade, certo?
Errado. O tal polícia era um emigrante cabo-verdiano de segunda geração, filho, também ele, de um casal recebido, décadas volvidas, na acolhedora protecção de Nha Bia… mais ainda, acontecia precisamente que, indo lá para esses lados, pensava visitá-la e o amigo poderia ir com ele…
Para nós, uma coincidência extraordinária! Para os cabo-verdianos recém-chegados à grande ‘Mérca nada mais natural – no Fogo, em S. Filipe, também logo alguém o ajudaria, afinal todos se conhecem. Porque haveria de ser diferente em Boston?
Como verifiquei com fascínio, ao longo do meu convívio de três anos de professora em Cabo verde, não é só ao menino e ao borracho que o criador dá sempre a mão – os cabo-verdianos, na sua comovente ingenuidade também fazem parte deste grupo abençoado.
Também ao João, colega de aventuras na escola do Porto novo, Ilha de Santo Antão, anunciando-se de partida para férias, em Portugal, viu-se perante a incrível pergunta:
-“ Vais para Lisboa? Levas uma carta ao Fernando?...”

Imersa neste sentimento Cabo-verdiano de, neste Mundo de Deus, nos acotovelarmos todos, como se partilhássemos a mesma aldeola, passo agora às minhas histórias…

Em Novembro de 1996, estava eu de vigília no Aeroporto de Lisboa, à espera do voo para Londres, onde ia passar uma semana, quando ouço, ao longe, naquele imenso espaço vazio, o guinchado irritante de um carrinho de bagagens a anunciar a chegada de um colega de vigília.
Num país de 11 milhões de habitantes, seria de calcular que essa pessoa fosse um desconhecido, certo?
Errado… naquele bar das partidas, apenas ocupado por mim e pela nostálgica empregada que tanto queria partir e sempre se via ficar (mas essa mulher é de outra história…), naquele bar deserto, dizia, vejo chegar o meu vizinho de aldeia, colega de liceu, e, imagine-se, em fuga para o Canadá, por via de umas negociatas obscuras com uns traficantes espanhóis que, àquela hora andavam aos tiros nos quintais vizinhos do dos meus pais, numa obscura aldeia litoral da Beira…
Na pressa da fuga, apenas conseguira voo para Toronto a partir de Heathrow, pelo que voei com ele para Londres e ainda ele não tinha embarcado para Toronto, já a minha mãe sabia da sua fuga e eu dos tiroteios.
Pois… extraordinário, não é? Para um cabo-verdiano seria natural – ainda hoje me faz sorrir este episódio do meu conterrâneo trambiqueiro que, em fuga, partilha um clandestino voo com uma indiscreta vizinha.

Uma aldeola espalhada por dois continentes, portanto.



Quando eu morava na ilha do Fogo, fui chamada ao Conselho Directivo da minha Escola Secundária, para me ser oferecida a oportunidade de leccionar um curso nocturno de Historiografia. O colega até então encarregado dessa disciplina era o Lívio e, enquanto me passava a pasta, deixou escapar que adorava Portugal, que lá tinha cursado Direito e que, antes de regressar à sua amada D’jar Fogo, tinha feito uma pós-graduação em Macau.
Já dentro deste espírito de vivermos todos numa aldeola, foi sem assombro que lhe contei que o meu Orientador de estágio em Seia, o Vítor, tinha sido professor de português em Macau. O Lívio, ao ouvir o nome completo desse meu orientador deixou escapar um sorriso melancólico no seu rosto impassível e olhando-me fundo nos olhos disse-me:
- O Vítor é um amigo para a vida, sabes? Adoro-o… e tenho orgulho em ter sido o seu melhor aluno…

Uma aldeola espalhada por três continentes, portanto.

O Jorge, meu amigo aqui do Ribatejo, contava-me há dias um episódio curioso. Há uns anos, antes de ser habitual ouvirmos o doce sotaque desse português tropical pelas ruas da nossa vila, morava aqui um brasileiro a quem me apetece chamar Sandoval. Trabalhava nas obras e sustentava a família de mulé e três gurizinhos lá no Pará. Como homem sem famíla, sentia a dor da solidão e costumava deambular pelas lojas abertas até mais tarde, perdendo-se em conversas que lhe espantavam a saudade do seu Brasil longínquo.
Era um sujeito pacato, boa gente, boa onda – todos gostavam dele. Inteligente e intuitivo sabia que se aprende muito mais no ouvir que no falar. Por alguma razão, Deus, que tudo sabe, nos equipou com duas orelhas e apenas uma boca…
Um dia, encostado ao umbral da porta de uma drogaria, vê entrar um sujeito de ar risonho e porte doutoral. Fiel à sua atitude de sempre, dispôs-se a ouvir o que o homem foi dizendo ao dono da drogaria. Mas algo se agitou no seu íntimo…e lhe perturbou o silêncio que tão criteriosamente mantinha. O homem que conversava com o dono da drogaria, embora português, trazia um açúcar no seu falar, uma doce entoação que encheu Sandoval de nostalgia.
- Essi hômi passa tempo no Brasiu, ué…- pensou.
De facto, ele tinha na voz a música do Brasil, polvilhava as palavras com açúcar antes de elas lhe saírem pelos lábios. As frases dele traziam doçura aos ouvidos de quem o escutava. Antes de se conseguir conter, antes da sabedoria de ouvinte o conseguir travar, Sandoval meteu-se na conversa:
- O amigo me desculpe, mais se bem lhe pergunte, o amigo costuma ir no brasiu?
O outro homem, espantado por ouvir falar aquele linguajar em pleno Ribatejo, sorriu e respondeu:
- É verdade, amigo, vou muito ao seu Brasil, sobretudo a Minas, ao Rio Grande e ao Pará…
Um baque seco ecoou no peito de Sandoval.
- Pará? Eu sou do Pará! O Senhor costuma ir ‘ pra Curitiba, é?
- Costumo, claro! Linda cidade…
- Linda, sim…
- os olhos já marejados de lágrimas…a voz embargada.
- O senhor passa lá muito tempo, é?
- Não, os meus negócios são no interior…perto de Curinima.
Novo baque
– Vixe Maria, homi! Essa é minha terra! Ó xente… a prefeitura da minha aldeia!
- Mas sabe, eu não conheço bem Curinima, porque eu nunca me hospedo lá. Passo lá apenas a caminho de uma aldeia muito bonita, onde vou comprar artesanato que um velhinho e sua mulher fazem. E depois vendo-o aqui…
- E se mal lhe pergunte, qual é mesmo o nome dessa aldeia?
Veio à cabeça de Sandoval a lembrança de Mestre Juvenal e sua mulher, Maria Aparecida, entrançando vimes e palhas na soleira da porta… fazendo pequenos milagres em todas as formas já inventadas e algumas por inventar.
- Eu fico sempre numa aldeia onde há uma moça que aluga quartos na sua casa. Não sei se ouviu falar, é Juripitica.
Mestre Juvenal e Maria aparecida materializados ali, sentados à porta da Drogaria, num paciente entrançar de vimes…
- O que é cê tá me dizendo, Homi! Essa é a minha aldeia!
- Ai é? Olha que coisa engraçada… a sério? Então você deve conhecer a moça que me aluga sempre um quarto! Na verdade, vocês até se parecem… no tom de pele, nos olhos…
- de repente, uma ideia – Espere aí… - remexeu cerimoniosamente na algibeira do seu “paletó” e retirou uma foto onde ele e uma bela morena sorriam para a câmara. Atrás deles, uma casinha linda com um alpendre de rosas entrançadas.
Sandoval pegou no retrato, olhou-o demoradamente, olhos húmidos e um soluço preso na garganta. Olhou o homem, olhou o dono da drogaria, que seguia atentamente este diálogo empolgante.
Apoiou-se no balcão, respirou fundo e disse, numa voz doce:
- Que linda ela está, a bichinha…
Deixou o retrato em cima do balcão, despediu-se, com um aceno de cabeça, do dono da loja e do dono da foto e deu dois passos na direcção da porta. Parou, hesitou e virou-se. Fixou o olhar, tão parecido com o da moça da foto, e disse simplesmente.
-Vou dormir, xenti… não é todos os dias que flagro minha irmã caçula no bolso de um paletó desconhecido.



Margarida Neves
Benavente, Março de 2009

sábado, março 21, 2009

Uma História de avaria


A avaria na minha fábrica


A Íris, uma amiga muito querida, olhou-me um dia com os seus olhos muito verdes e francos e disse

Acho que precisas de saber uma coisa... é sobre a tua pele.

Interessava-me o assunto.Havia anos que me debatia no pantanoso terreno da doença sem cura, das possíveis terapias tópicas ou de administração oral, das violentíssimas radiações UVA, das infrutíferas simulações de banho do Mar Morto…
Das sessões em psicólogos sem empenho, em psicoterapias sem profundidade, em psiquiatrias bem intencionadas... e por aí fora.Não posso, de todo esquecer, a irritante boa vontade de todas as criaturas, homens, mulheres, crianças, que se cruzam comigo na rua, em qualquer latitude que me tenha acolhido...Tirando o meu amigo Fábio do Júlio de Matos, que me aceitou como sou, todos os outros me olharam cheios de uma chocada consternação, fizeram comentários desnecessários de tão óbvios e deram sugestões que seriam absolutamente infalíveis.
Não se percebe, assim sendo, a existência da doença... com tanta gente a saber curá-la!
Do mais inofensivo sabonete de alcatrão até ao mais intragável kéfir, passando por óleos, azeites, infusões de eucalipto, vinagre, clara de ovo... enfim.
É uma coisa que me deixa completamente exausta, confesso. Não posso maltratar as pessoas, claro. Elas têm boa intenção, mas tenho de aturar isto cada três passos, de cada vez que ouso sair à rua com a pele doente exposta. É massacrante, acreditem.

Mas voltemos aos olhos verdes da minha amiga Íris.

Bioquímica de formação e sensível a esta minha dor permanente, decidiu nesse dia explicar-me a minha doença: apresentar-me a sua teoria, que passava pela alegoria de uma fábrica de montagem de automóveis.
Era uma tarde de Primavera, em que o Sol convidava a passeios de pele exposta e a mim me atirava para uma clausura depressiva... imposta.

Imagina tu - começa ela - que a nossa pele é feita numa fábrica que temos cá dentro e que demora dois meses a surgir à tona, fazendo uma viagem de construção desde o interior até atingir a superfície, que é o que nós vemos, acariciamos, beijamos.

Imagina uma fábrica com uma linha de montagem de automóveis, em que, ao longo de dois meses, se vão montado a estrutura, o motor, os assentos, os cabedais, os espelhos, os faróis, os detalhes todos todos todos, a pintura e... voilá... vai para o Stand de vendas, lindo e maravilhoso, onde todos o podem ver e alguns até acariciar e beijar...

É assim que funciona a fábrica de pele de uma pessoa saudável. Ao longo de dois meses vai-se construindo e a pele da superfície vai saindo em descamações ínfimas e o processo de construção da derme é feito deste constante ciclo de renovação.Acontece que a tua pele tem uma avaria na fábrica.
A fábrica de automóveis tem uma avaria na sua a linha de montagem.
O processo de renovação da derme, que deveria levar dois meses, acelera inexplicavelmente e apresenta-te a pele à superfície em apenas duas semanas, sem que esteja terminada.
A linha de montagem dos automóveis está a colocar no Stand de vendas automóveis com apenas duas semanas de construção.
A pele, vítima desta falha no processo de renovação da derme, está incompleta. Apresenta-se ao mundo vermelha, aflitiva, constrangedora e a provocar dores imensas e comichões intoleráveis.
Os automóveis vítimas desta falha na linha de montagem apresentam-se ao mundo incompletos, sem rodas, sem espelhos, sem terem sido ainda pintados.
A minha pele, para se proteger das impurezas, para evitar infecções, cria escamas.Um automóvel não pintado cria ferrugem.
O meu automóvel será sempre diferente de todos os outros que circulam pelas estradas da vida.

Mas como dizia alguém, faz parte do meu charme...

Benavente, Março de 2009
Margarida Neves