sábado, fevereiro 26, 2011

Uma história de frio brrrrrr

A união faz a força
(e mais vale dois doentes que um)




À janela do meu quarto, fumava um cigarro e perdia-me em pensamentos. Subitamente, apercebi-me de uma cena que se passava mesmo à minha frente, no parque de estacionamento da piscina municipal que está plantada nas traseiras da casa onde eu morava naquele ano.
Uma mulher, vestida com um fato de treino e com o cabelo molhado – arriscava-se a apanhar uma pneumonia, exposta ao frio daquela noite de Janeiro – estava ali parada, parecendo a imagem do desalento. O único automóvel que se via, um modelo antigo, contemporâneo do meu, que anda a sofrer de tosses e gripes mecânicas próprias da idade, deveria ser propriedade da mulher do cabelo molhado. Mulher essa que as minhas brilhantes faculdades dedutivas levaram a crer ser utente da piscina!
Contudo, a mulher continuava na rua, a personificar o desalento, a perscrutar a rua e a cozinhar uma pneumonia. O carro deve ter uma avaria, pensei eu e pensei bem. Chegou uma carrinha branca e dela saiu a providencial ajuda, também ela, vejam lá a coincidência, de cabelo molhado, mas, arrancada pela amiga ao duche, trazia uma turbante toalha. A turbante toalha começa a empurrar o carro modelo antigo com a cabelo molhado ao volante. Mas a velocidade que a turbante toalha imprimia ao modelo antigo não era suficiente para que a cabelo molhado o conseguisse ressuscitar. Tentaram várias vezes, comigo a torcer por elas, do confortável anonimato da minha janela. Finalmente, a turbante toalha deu mostras de cansaço (até eu estava, só de a observar!) e a cabelo molhado decidiu pôr em prática outra estratégia, ou seja, o plano B. Entrou na piscina e saiu de lá acompanhada por três solícitos, prestáveis e musculados mancebos que se organizaram em equipa e em três tempos puseram o modelo antigo a rosnar e a bufar com todo o seu furor mecânico.
Deste episódio se tiram duas conclusões: a primeira é que a união faz a força;
A segunda é que se a cabelo molhado tivesse optado logo no início pelo plano B, existiria apenas uma mulher com pneumonia no dia seguinte. Mas ela não foi egoísta, quis partilhar a doença com a amiga...

Castelo de Paiva, 3 de Janeiro de 2006
M.N

quinta-feira, fevereiro 24, 2011



A cor do decoro
(ou o ataque das Fúrias)





Fúrias - são três deusas vingadoras que punem os mortais. Vivem nas profundezas doHades, onde torturam as almas pecadoras. Alecto, a implacável, encarrega-se de castigar os delitos morais como a ira, a cólera e a soberba. Esta é a Fúria que espalha pestes e maldições;Megera personifica o rancor, a inveja, a cobiça e o ciúme. Castiga principalmente os delitos contra o matrimónio, em especial a infidelidade. É a Fúria que persegue com a maior ferocidade, fazendo a vítima fugir eternamente. Tisífone, a vingadora dos assassinatos, é a Fúria que enlouquece a vítima.Como o castigo final dos crimes é um poder que não corresponde aos homens (por mais horríveis que sejam), estas três irmãs encarregavam-se do castigo dos criminosos, perseguindo-os incansavelmente até mesmo no mundo dos mortos, pois o seu campo de acção não tem limites. As Fúrias são convocadas pela maldição lançada por alguém que clama vingança. São deusas justas, porém implacáveis, e não se deixam abrandar por sacrifícios nem suplícios de nenhum tipo. Não levam em conta atenuantes e castigam toda a ofensa contra a sociedade e a natureza, como por exemplo, o perjúrio, a violação dos rituais de hospitalidade e, sobretudo, os assassinatos e crimes contra a família.As Fúrias são entidades divinas que personificam a vingança e punem os mortais. Ou seja, de uma forma pouco explicada, elas acompanham a nossa vida na sombra e intervém nela para nos castigarem. Embora a sua jurisdição diga respeito a crimes horríveis e de grande monta, confesso que sempre me questionei se não serão também da responsabilidade delas os pequenos impedimentos que nos atravancam a vida. Sempre que perdemos o comboio ou o carro fica sem gasolina, sempre que o Multibanco nos engole o cartão e não o podemos resgatar porque o banco está fechado e também não temos dinheiro para pagar a gasolina e como tal vamos a pé para casa, porque também não há táxis de borla, sempre que a criança adoece no dia em que temos aquela apresentação à qual não poderíamos faltar, sempre que temos um furo e também chove, claro, sempre que temos bateria no telemóvel e não temos saldo, sempre que temos saldo e ficamos sem bateria, sempre que temos saldo e bateria … e não temos rede, há quem ache que “são coisas que acontecem”. Mas não são! Pelo menos eu desconfio que não…Só quem não imagina ouvir a gargalhadinha vingativa das Fúrias é que poderá achar que estes contratempos são coisas do acaso.As leis de Murphy preconizam que “Se alguma coisa pode dar errado, dará. E mais, dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível”.A nossa vida quotidiana é isso, este lufa-lufa de correrias, sem tempo para nada, onde as Fúrias se vão divertindo a atropelar-nos com contratempos. Eu acho que as grandes vinganças dos crimes horrendos é o trabalho delas e os pequenos impedimentos que nos causam são a diversão com que ocupam os intervalos. E nós lá vamos vivendo, vendo a vida passar sem a vivermos de facto, tão inebriados nos problemazinhos e na busca de soluções para as rasteiras das Fúrias e na vã tentativa de fintar as inexoráveis inevitabilidades das leis de Murphy que nem tempo temos para apreciar a tranquilidade de um céu azul.Esse é o nosso decoro, a nossa vida cinzenta, sempre igual, sempre polvilhada de nós cegos, sempre gasta a tentar desatá-los.Para quem precise de respirar, sugere-se a cor. Um universo paralelo onde o mundo e a vida ficam umas horas à porta. Onde se é absolutamente feliz. Onde se recarregam baterias para enfrentar o cinzento decoro.A cor pode ser muita coisa, é basicamente a nossa vingança pessoal para com as pequeninas diversões das Fúrias e a nossa manifestação de desalento ao constatar a inevitabilidade à qual não podemos fugir. A nossa cor – o decoro não me permite entrar em grandes pormenores, já que cada um sabe de si – é, talvez, a forma de respirar dentro de uma vida sufocante. Lembro-me, por exemplo, de uma simpática francesa que fazia ricochete com pedras na superfície de um rio. E essa conhecia um velhote que obliterava folhas de loureiro. O meu vizinho do lado rasga papéis, jornais, folhetos e delicia-se com o trrrrrrrrrrrrtt tranquilizante. Enfim, cada um sabe de si. O que importa é que exista e que o seu colorido saiba refrear as Fúrias e paralisar, momentaneamente a fatalidade das leis do tal Murphy.

O que importa é que nos dê forças para enfrentar o cinzento da nossa vidinha.


Margarida Neves

Mira, 9 de Dezembro de 2006

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

Uma história de Calor






Sabedoria luminosa








Ele até achava bem que a vila estivesse electrificada. Era um sinal de progresso, bom para o desenvolvimento do concelho, pelo menos era
o que o candidato tinha gritado ao microfone.
Nos seus tempos de menino, não havia luz eléctrica e, no entanto, ele e outros tinham nascido, crescido e vivido.

Mas a sua sábia idade ditava-lhe aceitar o progresso como consequência nefasta do prometido desenvolvimento.
Era por isso que não se incomodava com a ELECTRA, aquela central barulhenta e irrequieta, sempre a soprar fumos quentes pelas narinas dos ventiladores. Ao princípio, não conseguia dormir com o barulho que lhe invadia os sonhos e o deixava confuso de dia e agitado e vigilante de noite. Aquele calor que lhe entrava pelas janelas também foi um problema, mas, dizia, com um encolher de ombros, um homem de Deus habitua-se a tudo.
Depois chegou o advento da ecologia e logo vozes se levantaram a apregoar os malefícios daquela central. Diziam palavras que ele não conhecia, mas que a sua intuição lhe explicava. Poluição sonora, surdez precoce, poluição atmosférica, problemas respiratórios.
Afinal, tudo isso não era novidade, ele mesmo já o tinha pensado, embora com palavras mais claras.
Nas eternas guerras políticas que sempre existiram, desde que há homens a querer mandar, logo os outros refutavam que o desenvolvimento, o progresso eram mais importantes, eram o futuro, aquela palavra já tão pequena para ele, mas tão grande que enchia a boca de todos.
Também esses tinham razão. Afinal, ter luz em casa era bom. Poder ver aquela coisa que chamavam televisão e que não lhe ensinava nada, ter a cerveja fresca naquele armário branco, frigorífico, era o nome disso.
Coçou a cabeça, num gesto sem idade, que precedia a chegada do sono. Foi à janela olhar o céu e lançou um olhar ao monstro barulhento e fumegante que lhe fazia tremer as paredes ia já para dois anos.
Deitou-se, soprou a vela e fechou os olhos, para ver se o sono chegava.



MN
Aeroporto Internacional Amílcar Cabral
Ilha do Sal, Julho de 2001