sábado, março 21, 2009

Uma História de avaria


A avaria na minha fábrica


A Íris, uma amiga muito querida, olhou-me um dia com os seus olhos muito verdes e francos e disse

Acho que precisas de saber uma coisa... é sobre a tua pele.

Interessava-me o assunto.Havia anos que me debatia no pantanoso terreno da doença sem cura, das possíveis terapias tópicas ou de administração oral, das violentíssimas radiações UVA, das infrutíferas simulações de banho do Mar Morto…
Das sessões em psicólogos sem empenho, em psicoterapias sem profundidade, em psiquiatrias bem intencionadas... e por aí fora.Não posso, de todo esquecer, a irritante boa vontade de todas as criaturas, homens, mulheres, crianças, que se cruzam comigo na rua, em qualquer latitude que me tenha acolhido...Tirando o meu amigo Fábio do Júlio de Matos, que me aceitou como sou, todos os outros me olharam cheios de uma chocada consternação, fizeram comentários desnecessários de tão óbvios e deram sugestões que seriam absolutamente infalíveis.
Não se percebe, assim sendo, a existência da doença... com tanta gente a saber curá-la!
Do mais inofensivo sabonete de alcatrão até ao mais intragável kéfir, passando por óleos, azeites, infusões de eucalipto, vinagre, clara de ovo... enfim.
É uma coisa que me deixa completamente exausta, confesso. Não posso maltratar as pessoas, claro. Elas têm boa intenção, mas tenho de aturar isto cada três passos, de cada vez que ouso sair à rua com a pele doente exposta. É massacrante, acreditem.

Mas voltemos aos olhos verdes da minha amiga Íris.

Bioquímica de formação e sensível a esta minha dor permanente, decidiu nesse dia explicar-me a minha doença: apresentar-me a sua teoria, que passava pela alegoria de uma fábrica de montagem de automóveis.
Era uma tarde de Primavera, em que o Sol convidava a passeios de pele exposta e a mim me atirava para uma clausura depressiva... imposta.

Imagina tu - começa ela - que a nossa pele é feita numa fábrica que temos cá dentro e que demora dois meses a surgir à tona, fazendo uma viagem de construção desde o interior até atingir a superfície, que é o que nós vemos, acariciamos, beijamos.

Imagina uma fábrica com uma linha de montagem de automóveis, em que, ao longo de dois meses, se vão montado a estrutura, o motor, os assentos, os cabedais, os espelhos, os faróis, os detalhes todos todos todos, a pintura e... voilá... vai para o Stand de vendas, lindo e maravilhoso, onde todos o podem ver e alguns até acariciar e beijar...

É assim que funciona a fábrica de pele de uma pessoa saudável. Ao longo de dois meses vai-se construindo e a pele da superfície vai saindo em descamações ínfimas e o processo de construção da derme é feito deste constante ciclo de renovação.Acontece que a tua pele tem uma avaria na fábrica.
A fábrica de automóveis tem uma avaria na sua a linha de montagem.
O processo de renovação da derme, que deveria levar dois meses, acelera inexplicavelmente e apresenta-te a pele à superfície em apenas duas semanas, sem que esteja terminada.
A linha de montagem dos automóveis está a colocar no Stand de vendas automóveis com apenas duas semanas de construção.
A pele, vítima desta falha no processo de renovação da derme, está incompleta. Apresenta-se ao mundo vermelha, aflitiva, constrangedora e a provocar dores imensas e comichões intoleráveis.
Os automóveis vítimas desta falha na linha de montagem apresentam-se ao mundo incompletos, sem rodas, sem espelhos, sem terem sido ainda pintados.
A minha pele, para se proteger das impurezas, para evitar infecções, cria escamas.Um automóvel não pintado cria ferrugem.
O meu automóvel será sempre diferente de todos os outros que circulam pelas estradas da vida.

Mas como dizia alguém, faz parte do meu charme...

Benavente, Março de 2009
Margarida Neves

1 comentário:

OAmorDaFada disse...

Mas quem precisa de uma fabrica afinadinha para a pele quando tem uma linha de produção inteira para os neurónios do cerebro...???