quinta-feira, janeiro 11, 2007

Uma história de miniaturas

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Como um Bonsai

À Vera Gabriel – ela sabe porquê


Verónica teve durante muitos anos aquele cavalinho de madeira escura na sua secretária. Tinha sido um prémio dado por uma professora cheia de ideias brilhantes. A melhor composição tinha como prémio um cavalo, a segunda melhor um cão, a terceira um gato de madeira. O cavalinho era o seu companheiro desde esse dia glorioso, o dia em que a professora leu em voz alta a sua história, louvou o tema escolhido, “Se eu fosse nuvem, não chovia em nenhum coração” e toda a turma a aplaudiu com entusiasmo.
Logo no caminho para casa, de cavalinho bem apertado na mão esquerda e cavalgando-lhe pelo braço acima, até se alojar no coração onde brilhava o Sol da sua história, a pequena Verónica decidiu que a sua vida seria em permanência uma homenagem aos cavalos. Amava-os de longa data e com loucura.
Embora vivesse na cidade e só raramente os visse ao vivo, faziam diariamente parte da sua vida: coleccionava com avidez postais com imagens de cavalos e o seu sonho era ter um dia uma quinta onde pudesse ter muitos e cavalgar até à linha do horizonte.
Era como se sonhasse ter uma floresta e lhe tivessem oferecido uma árvore em miniatura.
Uma miniatura – sorriu. Abriu a mão onde o cavalinho estava aprisionado.

Gostas de Bonsais? - perguntou-lhe - Vou chamar-te Bonsai!
Cresceu com o Bonsai a trotar-lhe pelos livros, a galopar-lhe nas linhas dos cadernos, a saltar-lhe as vedações do lápis e canetas. De noite, dormia no estojo-estábulo.
Eram grandes amigos, Verónica e Bonsai. O tempo passou e ela frequentou o liceu e a universidade e fez-se médica. O seu amor por cavalos manifestava-se em pequenos gestos e em grandes decisões. Quando o Bonsai morava na sua secretária há quase um ano, nasceu-lhe em casa uma menina a quem ela insistiu chamar Filipa, a amiga de cavalos. Os pais concordaram e essa irmã, baptizada à luz de uma paixão alheia, também cresceu a amar o Bonsai e os seus parentes grandes e vivos que corriam pelos campos.
Nas tardes douradas de Domingo, Verónica levava Filipa a passear, para verem os amigos cavalos pastarem altivos nos prados. Verónica gostava dessas visitas à floresta, mas gostava ainda mais de voltar a casa, para a sua arvorezinha, o seu Bonsai único de tão particular.
Um dia trágico, Bonsai morreu. Um pequeno incêndio no escritório causou poucos danos à família, mas matou um pouco a Verónica por dentro. Feito de madeira, Bonsai foi dos primeiros objectos a arder, secar e desfazer-se em cinzas. Fiel aos princípios que defendia desde a infância, não deixou que as nuvens de tristeza lhe chovessem no coração. Afinal tinha tantos outros motivos de felicidade e o Bonsai era seu, muito seu. Mesmo cinza vivia na sua memória.
Os dias passaram, os anos passaram. Verónica era uma jovem médica ortopedista e trabalhava em colaboração com um centro hípico. Foi aí que conheceu Rodrigo. Ele era o veterinário que estava à frente do projecto em que Verónica trabalhava.

A conexão era perfeita, sentiam-se bem quando estavam juntos. Os silêncios entre eles eram confortáveis e isso, sabiam-no, queria dizer tudo.
Rodrigo foi um dia em trabalho a Viana do Castelo e, no regresso, trouxe à Verónica um inesperado presente. E também uma grande surpresa, uma surpresa maior do que ela. Quando rasgou o papel de embrulho, foi assaltada por uma estranha sensação. O passado atropelou-a no presente, a cinza recuperou a consistência da madeira. Espreitando dentro do embrulho rasgado, talhado numa madeira mais clara e com uma estrela na testa, um cavalinho irmão quase gémeo do Bonsai era o pequeno presente que Rodrigo trouxera a Verónica. Ele sabia que ela ia gostar, porque lhe conhecia o amor pelos cavalos. O que ele não conhecia era a história do Bonsai, Verónica só falava dele com a irmã, Filipa. O que Rodrigo não sabia era que o destino lhe dera o trunfo exacto para ganhar o coração da mulher que amava. E sem se saber munido de tal trunfo, jogara-o, porque assim lhe ditara a intuição.
O que Verónica já sabia era que tinha encontrado o amor da sua vida. Ela sabia que Bonsai olhava sempre por ela, onde quer que estivesse. E também sabia que ele lhe afugentava as nuvens, para que nunca lhe chovesse no coração.


Margarida Neves
Figueira da Foz, 11 de Janeiro de 2007


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