terça-feira, janeiro 02, 2007

Uma história de imprevisto

Em Coimbra, há poucos meses, foi construída uma belíssima ponte pedonal que tem umas paredes laterais numa sinfonia de mosaicos de vidro tricolor. Estes vidros estão dispostos como as facetas de um diamante, em vários ângulos.
Nada percebo de arquitectura e, tal como em todas as artes em que sou apenas contemplativa, a minha atitude é sempre a de admirar o belo, Sabendo, humildemente que não lhe apreendo a mensagem total. No entanto, a mensagem de um artista
é captada e construída pelo número de pessoas que a conhecem, numa plural concretização. A obra de um artista renasce em quem a vê e interpreta, sempre em renovadas roupagens. É essa a beleza da arte.

No entanto, enquanto passeava na ponte pedonal, outra ideia me ocorreu e é nessa que embarco, debruçada na sua tricolor amurada, rumo à minha próxima crónica.

Este texto é dedicado ao meu inesperado milagre, com quem fui conhecer a ponte pedonal de Coimbra.

O inesperado milagre

Não sei qual o objectivo de pôr aqueles vidros tricolores na ponte pedonal… mas já lhe encontrei uma utilidade. E encontrei-a de forma casual e acidental.
Casual, pois nem contava ir a Coimbra nesse fim-de-semana; acidental porque eu só queria fotografar o meu reflexo, humilde e modesta como sou…

E não é que surge um inesperado milagre?

A imagem surpreendente que resultou da minha atitude, plena de vazia vaidade, levou-me a pensar nas coisas magníficas que nascem de gestos direccionados para outros objectivos. Sendo fruto de um acidental desvio, originam resultados que têm tanto de fantástico como de inesperado.
Da feliz coincidência do acaso, nasceu uma fotografia que eu, confesso, nem acho digna de mim, já que eu gosto é de letras e palavras e nunca me considerei grande fotógrafa. Esta imagem equivale aos meus quinze minutos no âmbito da imagem.
Esta fotografia é também, sem dúvida, o milagre nascido de uma tosca e fútil procura de auto-retrato. Através de desvio acidental de um propósito único, consegui, sem o pretender, captar a cidade ao fundo, o reflexo das árvores atrás de mim e o meu reflexo, tudo num colorido puzzle de luz, realidade e reflexão.

Vou pegar na minha realidade, a de ter tido vários anos de experiência como professora de Português no ensino básico e secundário em Portugal e Cabo Verde e desenvolver uma reflexão acerca dos inesperados milagres que já me aconteceram enquanto professora.

È usual dizer-se que, se entre todos os alunos de um professor, apenas um aproveitar o trabalho realizado nas aulas e evoluir no seu conhecimento, esse único aluno compensa o trabalho e a dedicação do professor. O meu princípio é esse e é esse o de todos os professores que o são, de facto.
No entanto, nunca ouvi nem li nada sobre pequenas surpresas que os "artistas a haver" que tenho à minha frente numa sala de aula são capazes de fazer…
Se eu levo textos divertidos para eles lerem, é natural que haja um aluno que me venha entregar textos giros e imaginativos – aconteceu com o Telmo. Se eu promovo em aula oficinas de escrita com temas estimulantes, também é natural que uma aluna me diga que descobriu comigo que adorava escrever – aconteceu com a Patrícia. Se eu aconselho livros de leitura paralela e escolho os títulos mais apetecíveis para eles, é natural que outra aluna me traga listas de palavras desconhecidas, retiradas do livro que andava a ler e me pergunte o seu significado – aconteceu com a Sandra. Lembro-me que esta menina chegava a sacrificar os preciosos intervalos para aprender vocabulário novo comigo. Tudo isto são pequenos milagres que fazem com que a vida de professor valha a pena e que nos aquecem o coração. Mas são aqueles milagres esperados por nós, professores. Do mesmo modo, também o arquitecto que projectou a ponte pedonal de Coimbra espera o milagre de a ver bela, admirada e fotografada.
Mas o que ninguém espera - e por isso é que lhe chamo inesperado – são as pequenas ou grandes coisas que nascem da nossa atitude, mas não resultam no que nós projectámos. Divergem, logo no início da recepção e dessa viagem alternativa nasce algo fantástico. Fantástico, porque é um milagre nascido de um acaso acidental e mesmo assim, ou exactamento por isso, resulta em algo inesperado e alternativo.
No ano passado, por exemplo, tinha a meu cargo quatro turmas do 8º ano e era professora de Português dessas turmas e também de Estudo Acompanhado de três dessas turmas. Numa aula de Estudo Acompanhado, surgiu a oportunidade de lhes mostrar o filme O Fabuloso Destino de Amélie de Jean-Pierre Jeunet. O filme é excelente e eu sabia que os meus meninos iam ficar cativados por esta história tão engenhosa e bem contada. O que eu pretendia com esta actividade era mostrar-lhes bom cinema europeu, e testar a atenção deles, uma vez que lhes distribui uma ficha de acompanhamento do filme, onde existiam várias perguntas relativas a pormenores que apareciam apenas fugazmente. Quem acertasse no questionário todo, provava-me possuir um bom sentido de observação e uma boa capacidade de concentração.
Conseguir bons resultados era esperado, fazê-los apaixonarem-se pelo filme também era esperado, ter alguns meninos a pedirem-me o filme para o reverem em casa também era esperado… tudo milagres, mas esperados.

O que eu não contava era com o que um aluno meu fez… interessado numa rapariga do 9ºano, decidiu inspirar-se na personagem da Amélie, profícua em estratagemas rebuscados, e criou uma série original de enigmas e pistas para guiar a tal rapariga ao seu coração.
Esse resultado, confesso, não esperava eu! E mais, não esperava que o rapaz confiasse em mim, ao ponto de me mostrar o seu plano, para que eu lhe desse a minha opinião. Posteriormente veio ainda a contar-me o êxito retumbante da sua estratégia e a agradecer-me o facto de, indirectamente lhe ter mostrado o caminho que ele precisava. Ele sabia que para conquistar a menina, tinha de a surpreender. Este desenvolvimento foi um milagre inesperado, Cumpriu-se o pressuposto óbvio, o de um aluno interiorizar o que aprende na escola e conseguir aplicar isso no seu contexto pessoal. É claro que o rapaz usou um assunto pouco académico e pô-lo em prática num contexto nada académico… mas usou o cérebro, pensou, imaginou, foi criativo e, mais importante que tudo isso, usou o coração, fez algo muito seu com gosto e alegria. Isso para mim é um inesperado milagre.

Margarida neves

Mira, Janeiro de 2007

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