quarta-feira, julho 02, 2008

Uma história de uma ilha

A Ilha do Reino dos Céus



Vou ter uma consulta e aguardo a minha vez. Estou no Júlio de Matos, o Hospital dos malucos, ou, como diz a minha madrinha Cesaltina, “dos que têm pouco juízo”.
Confesso que estou apreensiva… sinto-me tão bem aqui que me questiono se deverei ficar preocupada. Atrás de mim, noutra mesa da esplanada, a apanhar o sol matinal, dois “malucos” discutem literatura. Um traz consigo O Rio das Flores, de Miguel Sousa Tavares; o outro opina que os clássicos é que valem a pena e, de facto, traz consigo uma obra de Proust que é uma referência, À procura do tempo perdido.
Falam de livros como há muito tempo eu não ouvia falar, nem no meu dia a dia, nem nas salas de professores por onde passei, nem sequer no seio daquelas pessoas cultas que de “cultas” têm a oca presunção e às vezes até de “pessoa” têm pouco. Os meus vizinhos de esplanada falam com paixão genuína, sem vestígios de vaidade. O amor aos livros está presente no seu estado mais puro, sem verniz, sem hipocrisias, sem competições ditadas por egos inseguros.
Passear pelos corredores destes edifícios é uma experiência marcante. Encontro a toda a hora gente que parece sósia dos grandes nomes da literatura. Ali, encostado ao balcão de atendimento, de fato escuro e ar tímido, parece o Fernando Pessoa. A deambular, perdido noutro universo, entre corredores e pensamentos, um homem de longas barbas, que podia bem ser o profeta Gentileza. Juro que, num canto, a espreitar atrás de um jornal, me pareceu ver o ar desconfiado do Leão Tolstoi.
Sente-se, na atmosfera, que estamos num sítio especial. Os empregados, seja da secretaria, seja do bar, são de uma simpatia e de um carinho inquestionáveis. Aqui, finalmente, me explicaram as coisas sem agressividade, sem má vontade, com todo o tempo do mundo. A pressa ficou lá fora, o imperativo neste lugar é não angustiar ainda mais as pessoas que precisam de visitar este espaço.
Da esplanada, onde vou escrevendo, vejo um conjunto de edifícios harmoniosos, de um cor-de-rosa tranquilo, antigos e bem conservados, rodeados por relvados, árvores e sombras. Um espaço óptimo para se estar, ler, escrever, meditar.
Por cima de mim, vejo chegar os aviões já muito perto do chão, aquela barriga enorme cheia de homenzinhos e as caudas e o dorso a apregoarem a sua proveniência. Uma gatinha meiga vem cumprimentar-me, roçando-se pela perna da mesa e, pela esplanada toda, os pombos diligentes debicam migalhas num bailado eléctrico. Adoro ver os aviões, adoro gatos, árvores, sombra, esta atmosfera de tranquilidade… isto parece mesmo ser o lugar ideal para mim.
Aproxima-se um rapaz. Vem, ziguezagueante por entre as mesas e fica a olhar para as minhas psoriáticas pernas ao sol.
- “O que é que tens? As tuas pernas estão vermelhas!” – informa ele.
- “É uma doença” - digo eu
- "tá bem…” - aceitou ele – “posso-me sentar?”
Vem-me à memória as muitas perguntas, sugestões e comentários sobre a minha doença de pele que tive de ouvir ao longo destes dias. O Fábio – é assim que se chama o rapaz – aceitou-me como sou. Não conhece nenhuma cura fabulosa, não me olha com pena, não fica a olhar, cheio de consternação ou piedade. Nada disso. Ele apenas me aceita como eu sou, puxa uma cadeira, senta-se e, como se fôssemos amigos desde sempre, pede-me um desenho.
Aproveito a abertura e começo a conversar. Pergunto que desenho ele quer e, através de perguntas de triagem (animal, pessoa ou casas? Pessoa; Homem ou mulher? Mulher) lá nos vamos guiando até aparecer no papel um desenho de uma mulher loura, de calças, saltos altos e blusa indiana. Felizmente o Fábio não é exigente em questões de arte, porque eu sou francamente medíocre a desenhar.
O Fábio diz-me que tem vinte e cinco anos e o meu diagnóstico amador dita: idade mental de oito, talvez paralisia cerebral, o que explicaria a dicção defeituosa.
Abençoada presunção que me permite estar cinco minutos com alguém e achar-me com a sabedoria de um diplomado em psiquiatria. De qualquer forma, para esta história, o diagnóstico serve, espero. Para além de oito anos mentais e uma ternura imensa, este rapazinho revela ainda um péssimo conhecimento de arte, pois aprecia o meu desenho e ainda vem pedir mais dois. Desta vez sabe o que quer: uma aranha a subir uma teia e uma borboleta.
Quando ele se meteu comigo, eu não imaginei que íamos passar tanto tempo juntos. Este rapaz tem a ingenuidade de uma criança e a malícia de um adolescente. Adora vangloriar-se com as suas conquistas amorosas e segredou-me que queria um computador para aceder ao site da Playboy…Recitou-me um poema, que diz ser da sua autoria, e é um autêntico monumento à poesia näif:
“I love you” – em Inglês
“Je t’aime” em Francês
Para te dizer a verdade
“Eu amo-te” em Português
Conhece muito sobre televisão e fala com entusiasmo de personagens e enredos; mas quando tento aferir o que ele sabe realmente de um assunto que menciona, muda abruptamente de assunto e escolhe um tema passível de me distrair. Se eu não aceito a mudança e volto ao assunto anterior, responde com uma palavra (“sim”; “foi”; “era”; “disse”) e volta ao seu novo assunto, onde está mais confortável, onde sabe dizer algo.
É um bom conversador e procura encontrar assuntos que me agradem. Como me viu a escrever, perguntou-me se gostava de livros e logo se vangloriou de saber ler. Dei-lhe um pequeno texto para aferir a veracidade da bazófia e fui apanhada desprevenida. Ele olhou, reconheceu tratar-se de inglês e devolveu-me a folha de papel. -“Isso é inglês… dá-me em português que eu leio” – e leu, de facto.
Confrontei-o, na brincadeira, com as mentiras que lhe apanhei e ele, safado, sorria e tinha a lata de me perguntar uma realidade verosímil, para poder ir mentir a outros.
Fábio – “Eu já namorava com um ano!”
Eu – “Impossível, com um ano nem falavas.”
Fábio – “Fala-se com que idade?”
Eu – (lembrando os meus sobrinhos) – “ Sei lá, 3, 4 anos.”
Fábio – “ Isso! Com 3, 4 anos já namorava! Enganei-me há pouco…”

E sei que esta informação, recém-chegada aos seus ficheiros mentais, vai ficar registada, para ser contada a todas as pessoas que o queiram ouvir.


O Júlio de Matos é um local parado no tempo e no espaço – uma ilha de tranquilidade. Um parque botânico onde o bulício da cidade não entra, onde os preconceitos são bem menores e menos ferozes. As diferenças aceitam-se mais facilmente, pois todos têm um pouco mais de diferença. Senti-o, literalmente, na minha pele.
Passei quase um dia nesta “ilha” e isso fez-me pensar. Claro que quero voltar à minha vida lá fora… mas senti-me mesmo bem aqui. Cheguei à conclusão que os doentes que aqui estão internados não vivem isolados do mundo apenas devido à doença. Eles vivem num mundo à parte, uma “ilha”, um pequeno paraíso, bem no coração da Capital. Chamei-lhe “A ilha do Reino dos Céus”, pois são eles os seus legítimos merecedores.


Margarida Neves
Lisboa, 26 de Junho de 2008


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