quinta-feira, fevereiro 24, 2011



A cor do decoro
(ou o ataque das Fúrias)





Fúrias - são três deusas vingadoras que punem os mortais. Vivem nas profundezas doHades, onde torturam as almas pecadoras. Alecto, a implacável, encarrega-se de castigar os delitos morais como a ira, a cólera e a soberba. Esta é a Fúria que espalha pestes e maldições;Megera personifica o rancor, a inveja, a cobiça e o ciúme. Castiga principalmente os delitos contra o matrimónio, em especial a infidelidade. É a Fúria que persegue com a maior ferocidade, fazendo a vítima fugir eternamente. Tisífone, a vingadora dos assassinatos, é a Fúria que enlouquece a vítima.Como o castigo final dos crimes é um poder que não corresponde aos homens (por mais horríveis que sejam), estas três irmãs encarregavam-se do castigo dos criminosos, perseguindo-os incansavelmente até mesmo no mundo dos mortos, pois o seu campo de acção não tem limites. As Fúrias são convocadas pela maldição lançada por alguém que clama vingança. São deusas justas, porém implacáveis, e não se deixam abrandar por sacrifícios nem suplícios de nenhum tipo. Não levam em conta atenuantes e castigam toda a ofensa contra a sociedade e a natureza, como por exemplo, o perjúrio, a violação dos rituais de hospitalidade e, sobretudo, os assassinatos e crimes contra a família.As Fúrias são entidades divinas que personificam a vingança e punem os mortais. Ou seja, de uma forma pouco explicada, elas acompanham a nossa vida na sombra e intervém nela para nos castigarem. Embora a sua jurisdição diga respeito a crimes horríveis e de grande monta, confesso que sempre me questionei se não serão também da responsabilidade delas os pequenos impedimentos que nos atravancam a vida. Sempre que perdemos o comboio ou o carro fica sem gasolina, sempre que o Multibanco nos engole o cartão e não o podemos resgatar porque o banco está fechado e também não temos dinheiro para pagar a gasolina e como tal vamos a pé para casa, porque também não há táxis de borla, sempre que a criança adoece no dia em que temos aquela apresentação à qual não poderíamos faltar, sempre que temos um furo e também chove, claro, sempre que temos bateria no telemóvel e não temos saldo, sempre que temos saldo e ficamos sem bateria, sempre que temos saldo e bateria … e não temos rede, há quem ache que “são coisas que acontecem”. Mas não são! Pelo menos eu desconfio que não…Só quem não imagina ouvir a gargalhadinha vingativa das Fúrias é que poderá achar que estes contratempos são coisas do acaso.As leis de Murphy preconizam que “Se alguma coisa pode dar errado, dará. E mais, dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível”.A nossa vida quotidiana é isso, este lufa-lufa de correrias, sem tempo para nada, onde as Fúrias se vão divertindo a atropelar-nos com contratempos. Eu acho que as grandes vinganças dos crimes horrendos é o trabalho delas e os pequenos impedimentos que nos causam são a diversão com que ocupam os intervalos. E nós lá vamos vivendo, vendo a vida passar sem a vivermos de facto, tão inebriados nos problemazinhos e na busca de soluções para as rasteiras das Fúrias e na vã tentativa de fintar as inexoráveis inevitabilidades das leis de Murphy que nem tempo temos para apreciar a tranquilidade de um céu azul.Esse é o nosso decoro, a nossa vida cinzenta, sempre igual, sempre polvilhada de nós cegos, sempre gasta a tentar desatá-los.Para quem precise de respirar, sugere-se a cor. Um universo paralelo onde o mundo e a vida ficam umas horas à porta. Onde se é absolutamente feliz. Onde se recarregam baterias para enfrentar o cinzento decoro.A cor pode ser muita coisa, é basicamente a nossa vingança pessoal para com as pequeninas diversões das Fúrias e a nossa manifestação de desalento ao constatar a inevitabilidade à qual não podemos fugir. A nossa cor – o decoro não me permite entrar em grandes pormenores, já que cada um sabe de si – é, talvez, a forma de respirar dentro de uma vida sufocante. Lembro-me, por exemplo, de uma simpática francesa que fazia ricochete com pedras na superfície de um rio. E essa conhecia um velhote que obliterava folhas de loureiro. O meu vizinho do lado rasga papéis, jornais, folhetos e delicia-se com o trrrrrrrrrrrrtt tranquilizante. Enfim, cada um sabe de si. O que importa é que exista e que o seu colorido saiba refrear as Fúrias e paralisar, momentaneamente a fatalidade das leis do tal Murphy.

O que importa é que nos dê forças para enfrentar o cinzento da nossa vidinha.


Margarida Neves

Mira, 9 de Dezembro de 2006

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