quarta-feira, abril 21, 2010

Uma história de comidas


Ratos

Tinhamos seis, sete e oito anos e éramos terríveis. Uma menina, eu, a mais nova, e três rapazes, o meu irmão era o mais velho. Não bastasse sermos quatro miúdos cheios de vida, sempre a arranjar problemas, sempre travessos, ainda tinhamos o patrocínio entusiasmado de um tio padre, estudante em Itália, que nos visitava muito na Alemanha.
O decoro não me permite revelar o seu nome, pois é um hoje o respeitável bispo de uma das nossas dioceses. Mas na altura era apenas um jovem padre, nosso companheiro de brincadeiras, um homem bem-disposto e desmiolado q.b.
Quando a vizinha de cima, uma velhota azeda se queixava do barulho que os índios portugueses faziam e dava umas sapatadas de protesto no chão da casa dela, que era o nosso tecto, o nosso tio ensinava-nos, com fervor pedagógico, a subir para cima de cadeiras, de vassoura na mão e...a estabelecer contacto morse com a vizinha. Nem sei como ela não mudou de casa.
Como é habitual entre compatriotas que vivem num país estrangeiro, reuniamo-nos sempre com outras famílias portuguesas. Como é habitual entre portugueses, o engodo era sempre o convívio ...à volta da mesa.
Naquele Domingo de Primavera, éramos cinco miúdos, todos com idades compreendidas entre os seis e os oito anos. O 5º elemento era filho do casal convidado, que contribuia para o convívio com a mão-de-obra na cozinha. Tinhamos ido ao mercado de Enchede, na Holanda e feitas as compras, os convidados ofereciam-se então para serem os cozinheiros.
No jardim, o futuro bispo entregava-se à edificante tarefa de ensinar as tropas a marchar, de vassoura ao ombro.
um dois um dois Alto
em Sentido
descansar
à vontade
um dois um dois

Nas suas palavras, a tropa precisava de “Xeplina” e era isso, disciplina que aquele religioso alucinado nos incutia. Aprendemos com ele a arte da diversão, o sabor apimentado da pequena transgressão. Este santo homem deve ser o melhor dos confessores – nada o deverá surpreender a ele, mestre das travessuras.
Naquele Domingo, enquanto marchávamos às ordens do nosso comandante, os dois convidados empenhavam-se na arte de criar o nosso almoço. Tinham um pouco a mania das modernices, queriam surpreender. E não é difícil surpreender malta que não tem imaginação nenhuma para se alimentar: batatas, batatas, batatas, arroz, massa, carne, peixe e basta – um enfado.
Da cozinha vinha um cheiro estranho, nem bom nem mau, estranho, apenas diferente. Depois de tanto marchar, pôr vassouras ao ombro, fazer continências ao comandante e ficar à vontade, as tropas entregaram as espingardas ao comandante que as foi guardar no barracão das vassouras. Como a fome começava a apertar, o nosso comandante decidiu, então, iniciar-nos na arte da espionagem militar, a ver se descobríamos o que ia ser o almoço.
Escolheu, para essa operação, o elemento mais capaz de levar a cabo o exercício de espionagem com eficácia e competência. Escolheu o elemento mais sensato, mais discreto, mais subtil, a única mulher. Escolheu-me a mim.
Vesti um camuflado, pus uma panela capacete , cheia de folhas e ramos de arbusto na cabeça e entrei em casa, colada às paredes. Os adultos que me viram, não me ligaram nenhuma. Sempre me conheceram assim. Aprendi a ler aos 4 anos, quando o meu pai ajudava o meu irmão nos trabalhos de casa e comecei logo a ler histórias. Com seis anos já lia com fluência e vivia mais dentro dos livros do que na vida real. Fui habituando toda a gente a um comportamento excêntrico – andar de panela cheia de ramos na cabeça era apenas mais um deles. Não era mais inesperado do que tantas outras coisas estranhas que eu fazia.
Fui-me aproximando do centro de actividades culinárias, o meu alvo de espionagem: a cozinha.
O cheiro era cada vez mais forte, mais bizarro.
Espreitei. Por entre a movimentação que se passava na cozinha, consegui ver um tabuleiro onde estava aquilo que íamos comer.
Um nojo.
Cheia de vómitos, corri para o quintal e, mais uma vez, os adultos da sala ignoraram-me.
Reuni as tropas.
- Não digam nada aos nossos pais – avisei-os – mas eles vão comer ratos no forno!
- RATOS? - até o padre se horrorizou.
Vencida, deixei-me caír na relva. Tirei a panela da cabeça e tentei acalmar-me – Ratos, sim... ratos.

Ninguém de nós cinco almoçou. Não conseguíamos sequer olhar para a travessa onde os infelizes roedores estavam dispostos, com palitos a trespassarem-lhes os ventres inchados.

O único que teve coragem para se servir foi o nosso comandante, homem de grande treino militar, habituado ao estoicismo de guerras.


- Parabéns, cunhado! - dizia ele, o jovem padre, o futuro bispo, enquanto levava um bocado de rato à boca – as tuas lulas recheadas estão uma delícia!



Ramalheiro, 16 de Abril de 2010
Margarida Neves

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