quarta-feira, abril 14, 2010

Uma história de visão














Flor discreta


Tinham floristas frente a frente, na mesma avenida, onde eu passo todos os dias. Mudo de passeio para passar em frente à da Flor, porque, decididamente, não gosto da Maria, chamemos-lhe assim.
Um caso de teimosia determinara que as lojas estivessem ali, provocadoramewnte frente uma à outra.
Uma das florista, a Maria, num gesto mesquinho e desleal, deu ordem de despejo à Flor, para assumir ela própria o negócio. É uma mulherzinha vil.
A outra, a minha Flor, inteligente e superior a estas mesquinhices, abriu serenamente o seu novo negócio. Frente à outra claro – um delicioso piscar de olho a quem intuiu a contenda. Porque a Flor é uma hino à discrição.Com um sorriso travesso e uma simpatia que temos de saber conquistar, contou-me que a sua loja, a sua florista, florescia.
Loja de longa tradição na venda de plantas e flores, a mais antiga fora da senhoria, a tal Maria vil, fora depois alugada à Flor e fora, finalmente cobiçada pela ganância maldosa da senhoria.
Daí o conflito, ganho com elegância e discrição por quem soube ser superior. Sem modéstias, fujo da mulherzinha e quero a Flor para amiga.

Esta história é minha, porque a escrevo, mas dela porque me inspirou.
E porque gosto tanto dela, claro.
Como ela mesma diz, uma pessoa que gosta de cães e de flores, só pode ser boa pessoa, das que valem a pena. E a minha Flor vale a pena. Gosto de pessoas assim, bonitas tranquilas, reservadas, discretas. - nem do conflito com a senhoria ela me falou, está tão acima desses enredos, esta rapariga! No entanto, eu entendi as linhas gerais da contenda com a senhoria. Entendi a história passada, num simples olhar de tristeza, ressentimento e orgulho. Orgulho por ter conseguido superar o mau tempo e estar agora a brilhar ao sol.

A palavra-chave desta história é discrição. As ideias para escrever surgem-me de factos do quotidinao que eu observo, ouço ou intuo, apartir de um olhar expressivo e de palavras caladas.São ideias que depois começo a trabalhar no meu espírito, que amadurecem e surgem no papel.

Num Domingo fui comprar margaridas, as minhas flores de eleição, amarelas, a minha cor de eleição. Fui à loja da Flor, como sempre faço. Ela estava a compor um ramo de rosas de paixão, belíssimas, uma homenagem morna a um amor quente.
Comparado com as minhas singelas margaridas, aquele ramo segredava uma paixão arrebatadora, revelava o fogo de um amor, recente, ou imortal.
Caramba – pensei - feliz da mulher que recebe um ramo assim do seu marido...
E logo o diabinho que mora dentro da minha cabeça e é sempre mais astuto do que o seu ingénuo vizinho anjinho, segredou-me, cheio de malícia: E sabes lá se é para a mulher dele?

Embatuquei.

Olhei para o homem, um quarentão charmoso, o tipo de homem que é uma tentação para qualquer mulher. Cheirava discretamente a um perfume caro, estava vestido com elegância, parecia pessoa sabida, era definitivamente do tipo malandro, daqueles que enlouquecem as mulheres. Daqueles que, com um olhar, roubam qualquer mulher aventureira ao bom rapaz que tem em casa. Olhei-o nos olhos, curiosa e logo desviei o olhar, rendida. Meu deus... olhos azuis...pele morena, cabelo grisalho, voz sensual, movimentos de felino, sedutor. Um homem que espera a presa que quer ser sua.
Uma perdição, definitivamente.
Pode ser que não, que as rosas sejam para a mulher... - o ajinho já só se atrevia a falar num fio de voz.
E eu sou o coelhinho da Páscoa – gozou o diabinho.
Segui a minha intuição, tomei o partido do diabinho.
Tinha ali um belíssimo exemplar de um malandro. E que malandro! Do melhor!...

Peguei nas minhas margaridas e saí. Ainda o ouvi pedir à Flor um discreto e sigiloso envelopezinho.
O anjinho calou-se, claro.
O diabinho sorriu
… e eu comecei a construir esta história.

Nos tempos idos, em que havia só uma florista na avenida e era a a mulherzinha a encarregada do negócio, houve problemas graves que alimentaram os cochichos da terra durante meses. Calhandrices, basicamente. Dona de uma lingua afiada e viperina e dotada de pouca inteligência, a florista, a Maria, tinha tido muito pouca visão.Tinha-se esquecido que o segredo acalenta o negócio. Tinha ignorado conselhos sensatos de quem antevia os problemas a haver. Fazia ramos vistosos, honra lhe seja feita, é uma Maria talentosa na arte de fazer poemas com flores.
No entanto, nunca soube guardar para si as histórias de amor e desamor que aqueles ramos segredavam. Nas fugas da vida cinzenta, em busca de ar, de liberdade, de cor, muitos homens, muitas mulheres perdiam-se em braços alheios. E, deslumbrados pelo fogo da novidade, buscavam na linguagem das flores as mensagens que calavam.
Deviam ser, obviamente, ramos discretos, quardados no segredo de quem os fazia, quem os oferecia, quem os recebia.Devia ser um triângulo de três vértices de silêncio. Mas vá-se lá pedir silêncio aoi vertice da Maria florista!
Falou, insinuou, especulou, sempre gulosa de escândalo, sempre vaidosa de ter novidades apetitosas para partilhar em segredo com quem a quisesse ouvir.

Ora, a melhor maneira de espalhar uma novidade, é, obviamente, contá-la em segredo e pedir que não se conte a ninguém...

As notícias já corriam de boca em boca , ante sorrizinhos alarves e palavras murmuradas, cheias de maladade. Durante um longo tempo, a terrinha fervilhou com aquele petisco que Maria florista distribuía generosamente. Em segredo...
Não teve visão, não soube cuidar do ouro, matou a galinha. Teve de alugar a loja à Flor. Antes até de se fornecer de plantas e flores, esta rapariga prática e e lúcida, sensata como só os mais velhos costumam ser, esta rapariga, dizia eu, encomendou um fornecimento de cartões bonitos e de envelopes pequenos, em várias cores. Instalou uma pequena bancada, o nicho do amor, chamava-lhe em pensamento. Fazia os ramos em silêncio, com o bom gosto de quem sabe entrançar flores, com a serenidade de quem se abstém de conhecer pormenores que só aos amantes dizem respeito.
A loja recuperou a saúde, as flores murmuravam palavras de amor, acobertadas pelo segredo do pequeno envelope.
Maria, a vil, não suportou o êxito alheio e retomou o seu lugar, expulsando a Flor. Reabriu de novo a sua antiga florista, gulosa da clientela recuperada.

O que ela não esperava era que a Flor abrisse uma concorrente mesmo em frente.
O que ela não suspeitava era que que a clientela apreciasse a discrição, a serenidade, o desprendimento daquela rapariga, tão cheia de juízo, de tacto para um negócio delicado como poucos.

Ainda hoje a s flores da loja dela são as mais bonitas, mais perfumadas.
São flores que brilham porque calam o amor.

São flores que têm o perfume da discrição.



Benavente, 14 de Abril de 2010
Margarida Neves

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