domingo, dezembro 10, 2006

Uma história de amor



O troféu único


À Celeste, que sugeriu o final desta história.

Passavam poucos minutos das sete da manhã. Dentro do meu carro, estacionada nas traseiras da Universidade de Coimbra e protegida do frio agreste daquele Dezembro rigoroso, entretinha-me a observar os infelizes que andavam ao frio.
Era um Renault Clio branco, matrícula RX – 07 – 61 (tenho a mania de fixar as matrículas). Aproximou-se do meu carro e estacionou mesmo à minha frente. Tornou-se, imediatamente, o meu alvo predilecto de observação. Do Renault primorosamente, milimetricamente estacionado, saiu um homenzinho envolto numa gabardine vestida à pressa. O vento gelado logo lhe despenteou o cabelo e empurrou a porta do carro. Via-se que estava com dificuldades para reunir os objectos que estavam dentro do carro e que queria levar consigo. Depois de alguns momentos de luta com o vento, que agora lhe empurrava a gabardine, lá conseguiu vencer e fechou a porta do carro. Na mão direita, um pasta professoral que adivinhei repleta de papéis desorganizados, mas geniais. Por detrás dos óculos de lentes grossas, consegui vislumbrar um olhar simultaneamente distraído e inteligente. “Deve ser professor universitário de matemática”, calculei.
A justificar o meu palpite tinha dois indícios fortes: uma pasta transportada por um olhar distraído e um carro primorosamente, milimetricamente estacionado. Divertida, ocorreu-me que, naquele dia, as forças cósmicas pareciam estar conjugadas para me aproximar da matemática. Sendo linguista, tinha-me inscrito num curso livre de matemática, era por isso que estava em Coimbra naquela manhã, e o destino estacionou-me um matemático genial à minha frente!
Satisfeita com o resultado das minhas meditações e inferências e ainda distraída com a estranha coincidência cósmica que me empurrava para a matemática, levei alguns segundos a aperceber-me do objecto que o professorzinho transportava no braço esquerdo. Carinhosamente aninhado entre o peito e o braço, como se de um bebé se tratasse, trazia um troféu de prata.
Não me lembro bem, mas acho que respirei fundo, tal foi o meu espanto. A observação estava-me a correr bem, o meu alvo apresentara-se até então dentro de parâmetros coerentes, tinha conseguido atribuir-lhe uma profissão, baseada em indícios que, a meu ver eram fortíssimos e irrefutáveis. Estava-me tudo a correr tão bem... e agora isto! Um professor de matemática (o meu espírito já não tinha dúvidas), dirige-se a pé para a Universidade e transporta um troféu de prata ao colo numa fria manhã de gelo.
O troféu a precisar de colo era um elemento tão contrastante com o cenário que me contrariou profundamente. Confesso que fiquei levemente irritada e, para ver se me passava, fui tomar café, até porque o curso livre que ia frequentar começava daí a vinte minutos.

PAUSA PARA CAFÉ

O curso livre decorria na faculdade de medicina, numa sala cedida temporariamente à matemática. “É pena” pensei eu “se fosse na faculdade de matemática ainda me podia cruzar nos corredores com o maluquinho do troféu ao colo”. Quando entrei na sala, já havia poucos lugares vagos e concentrei-me a procurar um espaço que me agradasse. Só depois de sentada observei a mesa do professor. Tive vontade de me beliscar para acordar daquele sonho. O troféu mimado estava ali, à minha frente, em cima da mesa do professor! E pior, o professor não era o meu maluquinho, mas um jovem Deus grego, moreno de olhos verdes. Só podia mesmo ser um sonho. O homem dos meus sonhos e o símbolo da vitória. Mas vitória de quê?
Decidi acordar no momento em que o jovem de olhos verdes começava a falar. Ele era um assistente, responsável pela organização do curso livre e tinha convidado para a primeira aula um eminente conferencista, muito conceituado no mundo da matemática por ter descoberto um teorema cujo nome me escapa. Pediu palmas quando o conferencista entrou e era ele, o do troféu. Comecei a ficar mais contente. Estava provado que as minhas deduções estavam certas e, com sorte, talvez se explicasse a presença daquele intrigante troféu.
No meu estágio pedagógico, ouvi falar e comecei a por em prática uma coisa chamada “motivação de aula” que é uma espécie de isco para prender a atenção do aluno e entusiasmá-lo para o assunto a ser abordado. Assim que o conferencista começou a falar, percebi que o troféu era um isco.
Tinha sido o prémio ganho nas olimpíadas mundiais de matemática. Era a prova de um amor de toda a vida, de um sonho concretizado. Agora já se percebia o colo, o mimo, o cuidado.
Então, alguém no fundo da sala perguntou ao conferencista quantos tinham sido os participantes dessas olimpíadas. Ele não respondeu logo. Sorriu e fitou-nos com aqueles olhos distraídos, mas cheios de inteligência. Por momentos pareceu viajar no tempo, imerso nas suas recordações. Depois, explicou-nos que ele tinha sido o único participante nas olimpíadas, porque já não tinha ninguém que se igualasse a ele. O troféu era dele, já que ele era o único a apresentar um teorema. Mas para ele, era como se tivesse vencido cem participantes. Porque mais do que a concorrência ou a competição, interessava-lhe a sua entrega à matemática e aquele troféu lembrava-lhe todos os dias que vale a pena trabalhar e investir num sonho, mesmo quando a única mente com a qual se compete é a nossa.
Se o troféu significava tudo isso para ele, então era justo que o trouxesse ao colo. Afinal é a um filho que nos dedicamos todos os dias e não competimos com ninguém pelo amor dele. E trazemo-lo ao colo.


MN
Início: Ramalheiro, Janeiro de 2005
Fim: Castelo de Paiva, 6 de Fevereiro de 2006

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