domingo, dezembro 10, 2006

Uma história de atalho



Mais a direito


Uma senhora muito simpática, chamada Georgina, disse-me um dia, a propósito do seu nome que não era assim que as pessoas a tratavam. Na sua voz calma e arrastada, explicou:
- O meu nome é Georgina, mas as pessoas chamam-me “Jorzina”, que é mais a direito.
Esta frase, dita naquele belíssimo sotaque ribatejano – embora a senhora viva a sul do Tejo – nunca mais me saiu da cabeça.
Linguista amadora que sou, dou por mim muitas vezes a pensar estas particularidade da língua. Já nos meus tempos de contacto diário e directo com o crioulo de Cabo Verde, me fascinava com o princípio da parcimónia. Basicamente, trata-se do emprego da lei do menor esforço, transposta para o universo da articulação de uma língua. Por exemplo, de um rebuscado e quinhentista: “Vós quereis conhecer-me” atalhou-se, em crioulo, para um despachado e compactado “Bo kre konxe-m".
Há dias, o meu pai, leitor compulsivo, comentou que não conhecia uma palavra que aparecia no livro que andava a ler. – Deve ser uma palavra muito rara – pensei, conhecedora da amplitude lexical do leitor em causa. Tratava-se da palavra “Pâmpano”. Fomos logo procurar no dicionário para descobrirmos…

Pâmpano - s. m.
(bot.) ramo tenro de videira; parra;
(arq.) ornato que imita ramos de videira com parras e, às vezes, com uvas.
(Do lat. pampînu-, «ramo de videira»)

… que se tratava de um rebento terno de videira. – Ahh… - disse o meu pai – eu sempre chamei a isso “pompo”. Afinal, ele conhecia a palavra. Mas conhecia a sua versão mais a direito.
Da mesma forma, quando se vai à “Cambra” Municipal ou se fazem “Combros” a ladear terrenos de cultivo, vai-se mais a direito do que fazendo o esforço de articular as palavras Câmara e Cômoro.
Na minha terra, as fogueiras acendem-se por atalhos, com “fórfs” ou “fósfres”, já que o tempo gasto para dizer a palavra toda demora mais que um fósforo. E se não estiver frio e precisarmos apenas de luz, acendemos a “lampa”, que se for a lâmpada podia-se gastar mais.
Pelos atalhos do linguajar, fomos criando uma versão alternativa à língua oficial, a dos calhamaços, que no fundo, ninguém fala no seu estado puro. Seguindo o princípio da parcimónia, inventámos uma espécie de crioulo gandarez. Despachado e desenrascado como é, o gandarez não esteve com meias medidas e optou pela via mais fácil, a que dava menos trabalho: foi mais a direito.
Da mesma forma que os ribatejanos chamam “Jorzina” à D. Georgina, por todo o país existe uma versão alternativa e simplificada do léxico dos calhamaços. Dizia-me o meu amigo Andrea Santi, Italiano de Sienna a estudar em Coimbra, que o português que aprendeu em Itália era uma língua diferente da que os portugueses usavam. Para o confortar, expliquei-lhe a minha teoria. Ele aprendeu português, mas cá fala-se crioulo.



MN
Mira, 26 de Novembro de 2006

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